Do OMBUDSMAN da FOLHA
Por JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
Folha erra ao impor privatizações como panaceia e interditar o debate
Ainda que redes sociais e mecanismos de busca condicionem títulos e textos noticiosos de maneira cada vez mais contundente, certas regras insistem em perdurar. A maioria dos enunciados da Folha, por exemplo, continua no tempo presente, o tempo do jornalismo, apesar de esforços em contrário. A lista de coisas a se evitar também continua importante, como o gerundismo e o deselegante imperativo.
“Privatize-se”, escreveu a Folha em editorial na noite de terça-feira (3), após o dia de transtornos provocados pela greve de funcionários do transporte público em São Paulo. Mais do que forma verbal, como descreveu Thiago Amparo, uma ordem a um estado em que 43% recusam a proposta de privatizar empresas e serviços.
A greve é política, argumentou o jornal, como se isso bastasse para justificar a venda de qualquer coisa. O colunista notou que a greve é sim política e que isso não é um problema. Ruim é despolitizar a vida. E, pelo contrário, o que mais precisamos no inferno paulistano é buscar consensos, discutir os rumos da cidade.
A greve é ilegal, martelou o editorial e também o jornal em seus títulos principais sobre o evento. A manchete do impresso foi “Greve em SP para trens e desobedece juiz”, em tom inconformado, quase editorializado. Qual greve ocorre sem embate judicial, sem flertar com a confusão, perguntou o ombudsman em crítica interna. Era muito mais fácil relatá-la como o que foi, uma manifestação pública contra as planejadas privatizações do governo Tarcísio de Freitas. Ou, melhor ainda, que o dia de caos antecipava a disputa eleitoral de 2024, como concluiu em análise Igor Gielow.
A Folha, no entanto, se mostra intolerante ao tratar do assunto, que virou uma espécie de prioridade do jornal desde agosto do ano passado, quando outro editorial, com título mais polido (“Privatizar é bom”), sublinhava aos então candidatos à Presidência que o assunto era um tema importante. As ameaças antidemocráticas já faziam o país arder, mas havia um recado a ser dado. Talvez a leitora e o leitor esperassem demandas diferentes, mas aí já é outra história.
Daquele editorial ao da última semana, 15 textos sobre privatização ou que citavam a temática foram publicados pela seção de Opinião, um por mês desde agosto último. Não é uma frequência acima do normal, ainda mais para um assunto em pauta, mas o problema não está nisso. O que distingue a defesa do sistema de outras tantas bandeiras levantadas e conduzidas pela Folha é a veemência, escancarada na escolha do último enunciado, na ordem proferida. O jornal escreveria “Legalize já”?
Não se discute aqui as razões para tamanho esforço, mas a forma. Como no caso da cobertura da greve, seria bem mais simples ampliar o debate e conceder espaço justo para o contraditório. O próprio jornal constatou em suíte na última semana que o transporte sobre trilhos privatizado é “raro em metrópoles”; a linha concessionada da CPTM é um fracasso a olhos vistos; por que não promover um seminário sobre reestatizações de saneamento ocorridas em outros países. Sobram caminhos.
Interditar o debate é o que os dois lados da disputa política almejam. A Folha pode e deveria fazer diferente.