EDITORIAL DA FOLHA
São gravíssimas as suspeitas da PF sobre vigilância pela Abin sob Jair Bolsonaro
Governos autoritários, por definição, sacrificam direitos dos cidadãos em nome de algum alegado bem maior, assim definido por ninguém menos que a própria cúpula ditatorial. Liberdade, intimidade e garantias processuais, por exemplo, tornam-se palavras mortas para quem só entende a linguagem da força e do arbítrio.
Faz quase 40 anos que o Brasil se livrou desse tipo de opressão estatal, mas, a crer nas investigações da Polícia Federal, o governo de Jair Bolsonaro (PL) mandou às favas alguns princípios constitucionais e decidiu monitorar, de forma secreta e ilegal, a geolocalização de celulares de jornalistas, políticos e adversários do então presidente.
De acordo com a PF, a espionagem partiu da Abin e ocorreu de 2019 a 2021. A Agência Brasileira de Inteligência teria utilizado um software adquirido por R$ 5,7 milhões, sem licitação, no último ano do governo Michel Temer (MDB).
Chamado FirstMile, o instrumento permite rastrear o GPS de qualquer pessoa pelos dados transferidos para torres de telecomunicação, com o limite de 10 mil celulares a cada 12 meses. Também é possível criar alertas em tempo real, para informar quando um dos alvos se movia para outros locais.
Foi com base nessas suspeitas repulsivas que a PF deflagrou, na sexta-feira (20), uma operação para cumprir 25 mandados de busca e apreensão, além de dois de prisão de servidores da Abin —que terminaram demitidos no mesmo dia.
Outros membros da Abin, por sua vez, reclamaram do espalhafato da PF; eles afirmam que a própria agência começou as investigações na gestão atual e compartilhou as informações levantadas com os órgãos competentes.
Sendo verdade, será mais um episódio lamentável nessa trama maior, cuja gravidade só faz crescer a cada nova descoberta. Uma delas é que o Exército adquiriu o mesmo software de espionagem —e se recusa a responder perguntas da Folha sobre o uso da ferramenta.
Não se trata de negar às forças de segurança e militares o direito de investir em inteligência. Ações preventivas e de investigação, desde que revestidas de legalidade, são mais bem-vindas que a repressão bruta após o estrago ter sido feito.
Dado o histórico do governo Bolsonaro, contudo, parece natural a suposição —ainda por comprovar— de que mecanismos desse tipo tenham sido destinados a outro fim: reforçar os planos abilolados de desfechar um golpe de Estado.