Do JOTA

Por LUCAS ANASTÁCIO MOURÃO, DIOGO FLORA e ANDRÉ LUIZ DE CARVALHO MATHEUS

Utilização do termo é típica do debate na arena pública nos últimos anos

Nos últimos anos, o Brasil vem passando por um processo de polarização política que resulta em parcelas da população mais engajadas politicamente – fenômeno positivo ou negativo, a depender do objetivo desse engajamento. Também resulta num debate público mais intenso, acalorado e, eventualmente, grosseiro.

As mídias sociais em geral contribuem para o acirramento desse tipo de discussão; seja porque qualquer pessoa com acesso à internet pode participar dessa ágora moderna, seja porque os próprios atores principais do debate público (políticos eleitos e jornalistas, por exemplo) fazem de seus perfis online verdadeiras tribunas através das quais afirmam suas convicções, exaltam seus aliados e, claro, rechaçam seus opositores.

Muitas vezes, esse debate naturalmente (in)tenso deságua, de parte a parte, na utilização de artifícios não só indesejados, mas também abertamente ilegais, como a criação e a difusão de notícias fraudulentas (as famigeradas fake news e suas variações), a proliferação de discurso de ódio e até conspiração, à luz do dia, de movimentos políticos visando a abolição do Estado de Direito.

Como uma das consequências desse ambiente polarizado, é natural e até esperado que haja (des)qualificações que busquem categorizar pessoas ou grupos em um ou outro espectro político. Assim, é comum ler publicações ou assistir a vídeos que denominam adversários como comunistas, fascistas, integralistas, nazistas, conservadores e outros rótulos caricatos.

Como produto desse tagueamento mútuo, observa-se um crescimento no volume de demandas judiciais buscando responsabilizar civilmente ou mesmo criminalmente aqueles que utilizam termos como “fascistas” ou “nazistas” para referir-se a adversários. Preocupa, sobretudo, que boa parte dos demandados sejam cidadãos comuns e comunicadores em geral, fato que pode sinalizar que há uma “moda” de agentes públicos eleitos e figuras públicas em geral de processarem aqueles que, por qualquer motivo, os tenham categorizado com as pechas de fascistas e nazistas. Preocupa, também, o fato de que alguns juízes (embora não sejam maioria) estarem julgando procedentes ações dessa natureza, o que coloca o Poder Judiciário à serviço da criação de um efeito amedrontador, a partir do qual pessoas em geral (e comunicadores em particular) potencialmente terão medo de dar suas opiniões sobre pessoas públicas.

Outrossim, chamar alguém de fascista ou nazista, embora possa não ser agradável para quem se atribui o termo, não pode, via de regra, ser visto como gerador de dano indenizável. Trata-se, a rigor, somente uma categorização simplificadora feita pelo observador do espectro político a que o observado, por suas convicções ou condutas, parece se aproximar. A utilização desses termos, ainda que pesada, incômoda e até inoportuna, é típica do debate político ocorrido na arena pública que, por sua vez, é caracteristicamente acalorado e ríspido; isto é, posições antagônicas, expressadas num contexto de debate, frequentemente utilizam de afirmações hiperbólicas, buscando intencionalmente o exagero retórico para confrontar o interlocutor.

Muitos doutrinadores já escreveram sobre os direitos políticos na sociedade moderna, inclusive sobre as liberdades, porque são percebidos consensualmente como um direito fundamental. O desembargador do TJRJ André Andrade, na sua mais recente obra, destaca que os debates jusfilosóficos têm dividido o tema da liberdade de expressão em dois campos, sendo que uns “consideram-na como um direito essencial do ponto de vista coletivo, para a sociedade como um todo, enquanto outros a veem como fundamental para o indivíduo em si considerado”.[1] Essas justificativas indicam o caráter multifacetado da liberdade de expressão. Desses prismas ligeiramente distintos, duas teorias se destacam: a teoria da verdade e da autonomia.

A teoria da verdade entende a liberdade de expressão como instrumental, pois seria essencial para o avanço do conhecimento humano e, do livre confronto de ideias, a verdade sempre triunfaria. Entre os teóricos que apresentaram esses argumentos estão John Milton, em sua obra Aeropagítica, e John Stuart Mill, em Sobre a liberdade. Como explica o professor Lucas Catib De Laurentiis, para esses autores a liberdade de expressão só existe quando houver a preservação daqueles com os quais concordamos e, também, dos quais discordamos.[2] Podemos extrair, então, que a condição que justifica presumir a verdade de uma opinião é exatamente a ampla liberdade de se poder contradizê-la e de provar a sua falsidade.[3]

De outro prisma, temos a teoria constitutiva da autonomia, amplamente defendida por autores renomados, como Ronald Dworkin, que propugna que não haverá o respeito à igualdade e democracia sem a participação de todos no juízo moral da sociedade. Para essa teoria é primordial que o indivíduo “desenvolva o mais plenamente possível a sua personalidade, explorando suas capacidades e suas potencialidades nos diversos aspectos da sua vida”.[4] A liberdade de expressão nas sociedades modernas se torna garantia essencial ao livre desenvolvimento da personalidade humana, pois possibilita a interação comunicativa com o semelhante, tanto ao expressar ideias como ao ouvir aquelas expostas pelos outros.

De todo modo que se analise, mesmo aquelas manifestações consideradas desagradáveis estão sob o manto da proteção, pois a liberdade de expressão “serve, precisamente, para assegurar a cada um de nós o direito de julgar e escolher, sem a tutela do Estado”, como arremata Gustavo Binenbojm.[5]

Os tribunais também têm se debruçado sobre a questão. Embora não haja hierarquia entre direitos fundamentais, a ratio decidendi de fundamentações do STF em ações de controle concentrado de constitucionalidade, notadamente ADPF 130, ADI 4815, ADI 4451 e ADPF 572, permitem concluir que a corte constitucional brasileira aplicou a tese da posição preferencial à liberdade de expressão ou, ao menos, de um prestígio qualificado.

Mais do que a liberdade de expressão gozar de status de sobredireito, há uma tolerância constitucional ainda maior quando a discussão se trata de críticas (por mais duras e veementes que possam ser) direcionadas a atores políticos. É o que depreende, sobretudo, a partir do ARE 722.744/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello que, em seu voto, fez referência a um importante julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual afirma que “os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma.”[6]

Entendimento semelhante adotou o TJSP recentemente, quando, por unanimidade, a 7ª Câmara de Direito Privado negou provimento ao recurso apresentado por Fábio Wajngarten, ex-chefe da Secom do governo Jair Bolsonaro, que pedia indenização por danos morais à Editora Três e ao jornalista Joaquim Germano da Cruz Oliveira, por reportagem onde Wajngarten é comparado Joseph Goebbels, chefe do departamento de propaganda do regime nazista. O Desembargador Relator Seung Chul Kim concluiu que, apesar das “críticas ácidas”, a reportagem discutia tema de interesse público e não ultrapassou o animus criticandi.

Essa interpretação deve ser aplicada não somente a agentes públicos, mas também a qualquer pessoa que se preste ao debate público (naturalmente buscando os bônus dessa exposição), que deve suportar o ônus de ser publicamente criticada ou mesmo ter sua conduta caracterizada como filiada ou semelhante a esta ou aquela corrente político-ideológica, ainda que tal caracterização lhe seja incômoda, desconfortável ou mesmo ofensiva. Em outras palavras: além de “fascista” e “nazista” não caracterizar xingamento propriamente dito, as pessoas públicas devem ter os seus direitos à honra e vida privada interpretados de maneira mais restrita, já que estão mais sujeitas ao escrutínio público, às críticas e até mesmo ao confronto aberto de ideias, contexto que favorece debates intensos.

Além disso, há ampla proteção à liberdade de expressão positivada tanto na Constituição Federal (em especial no art. 5º, IV, XIV e art. 220) quanto em âmbito internacional (Pacto de San José da Costa RicaDeclaração Universal de Direitos HumanosDeclaração de Chapultepec e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), o que nos leva a concluir que, via de regra, apontar alguém como fascista, nazista ou qualquer outra classificação política não configura ato ilícito, sendo, na verdade, parte inerente do debate ideológico, de modo que a mera rotulação não é suficiente para afastamento do sobredireito da liberdade de expressão que, como é próprio de regimes que se pretendam democráticos, deve ocorrer apenas de maneira excepcionalíssima e com elevado ônus argumentativo.

Portanto: é lícita, no âmbito de debates de natureza política, a categorização dos interlocutores ou de suas condutas, em especial quando se tratam de pessoas públicas, com a pecha de fascista, nazista ou algo que o valha, em qualquer arena do debate político, inclusive na internet.


LUCAS ANASTÁCIO MOURÃO é Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão, sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, mestrando em direito pela UERJ, membro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça

DIOGO FLORA é Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão, sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, doutorando e professor da UERJ, parecerista ad hoc da ONU para segurança de jornalistas

ANDRÉ LUIZ DE CARVALHO MATHEUS é Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão, sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, mestre em direito pela UERJ, membro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça

*Lucas, Diogo e André são advogados do Blog do Paulinho

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