Da FOLHA

Por BERNARDO CARVALHO

Dimensão abertamente violenta da nossa identidade nacional desbarata a própria ideia de consenso republicano

Sou um cara meio ingênuo. Jurava que depois de dois anos de pandemia, mais de 600 mil mortos graças à irresponsabilidade criminosa do governo, orçamento secreto, rachadinhas, desmonte institucional, imposturas e mentiras descaradas, propina de pastores em barras de ouro, licitações ilícitas, milícias, a Amazônia entregue ao crime etc., quando afinal voltasse à academia de ginástica, seria recebido de braços abertos, com pedidos de desculpas e gestos solidários pelos colegas com quem me indispus antes e depois da eleição de Bolsonaro e que na época juravam querer salvar o país.

A princípio evitei confrontá-los quando os revi, cheguei a desviar o rosto em alguns casos, para não forçá-los à humilhação de uma desculpa involuntária.

Por culpa deles e de gente como eles, que nunca assume a consequência de seus atos embora num primeiro momento até ache que pode desfrutar da sua inconsequência, acabamos todos no mesmo inferno presidido por uma gangue de trombadinhas, assistindo paralisados à pilhagem econômica, social, institucional, cultural e ambiental do país.

Logo descobri que meus velhos contendores não só não tinham do que se desculpar, mas que alguns não hesitavam em se aproximar de mim em busca de uma cumplicidade traficante, voz baixa, olhos nos olhos e sempre sem máscara, como se não vissem a minha e nesses dois anos tivessem esquecido quem eu sou, para expressar sua indignação com gente dormindo na calçada do prédio onde moram ou pedindo comida na porta de restaurantes. E, claro, para ironizar a liderança de Lula nas pesquisas, como suposto “salvador da pátria”.

O destino da França e, por tabela, do mundo se decide neste domingo (24) entre o presidente Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen. Esperamos que Macron, apesar da impopularidade e da rejeição à esquerda entre os eleitores de Mélenchon (22% dos votos no primeiro turno), seja reeleito graças a uma ampla frente republicana contra o fascismo.

Só o fato de a candidata de extrema direita estar pela segunda vez consecutiva no segundo turno do pleito presidencial francês já diz muito sobre o estado de coisas no mundo em geral e na França em particular. Desta vez, entretanto, Le Pen teve de lançar mão de uma aparência de civilidade e civismo sem-vergonha, sem a qual o outro candidato de extrema direita, Éric Zemmour, acabou reduzido a 7% dos votos no primeiro turno.

As consequências acabam sendo as mesmas, mas é notável que entre nós não precisemos de nenhuma fachada para manter Jair Bolsonaro (o mais próximo de Éric Zemmour em território nacional) competitivo nas projeções de intenção de voto.

Quanto mais violento e incivilizado e abertamente suicida, mais nos sentimos representados (penso nos meus colegas de academia). E isso depois de já sabermos o que é estar submetido ao banditismo mafioso de um governo de extrema direita.

É uma dimensão paradoxal e assustadora da nossa nacionalidade, que desbarata a própria ideia de frente ou consenso republicano, sem a qual uma democracia não tem condições de resistir a nada. O que nos une é a espoliação do bem comum, público. Elegemos um presidente (consciente ou inconscientemente) contra nós mesmos, para desmantelar a nação. E corremos o risco de insistir na tentativa de suicídio. Quem sabe pela última vez.

É sobre a ideia de um consenso nacional republicano que se desdobra o drama político “A Morte e a Donzela” (1991), sucesso internacional de Ariel Dorfman, filmado por Roman Polanski e que se publica agora com tradução de Sérgio Molina numa bela e oportuna edição da Carambaia.

A peça encena, à saída de uma ditadura militar (o Chile é o modelo), o reencontro casual de uma mulher, casada com um advogado que trabalha pelos direitos humanos, e seu torturador. No posfácio, o autor argumenta: “Pode um povo buscar justiça e igualdade se continua assombrado pela ameaça de uma intervenção militar? […] Em que sentido somos todos responsáveis, em parte, pelo sofrimento dos outros, pelos grandes erros que levaram a um confronto tão horrendo? […] Como enfrentar essas questões sem destruir o consenso nacional, que é a base de toda estabilidade democrática?”.

Bolsonaro entendeu o problema que se apresentava à nação e fez sua aposta contra ela.

Por séculos os brasileiros quiseram saber quem eram e forçaram uma resposta muitas vezes artificiosa sobre a identidade nacional, nas artes e na cultura. Neste ano afinal teremos a oportunidade de conhecer a resposta, para valer, nas urnas.

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