Augusto Melo, que tratou Tia Cida como ‘gorda negrona’

Da FOLHA

Por CAMILA MATOS, JULIA DRUMMOND e YASMIN TRINDADE

Valor médio das indenizações revela o quão limitada é a visão dos juízes

Um funcionário foi ofendido pelo seu patrão, que o chamou de “macaco” e “preto”. Outro foi rotulado de “preto sem vergonha” por um colega do mesmo setor. Uma mulher que tentou apartar a briga entre uma amiga e o ex-namorado foi chamada de “neguinha”. Outra foi ofendida pela vizinha, que a classificou de “neguinha encardida”. Nenhum dos autores dessas ofensas pagou mais de R$ 10 mil de indenização.

Todas essas situações são reais, retiradas de casos encontrados em pesquisa realizada pelo Núcleo de Justiça Racial de Direito da Fundação Getulio Vargas. Após a análise de 618 processos de Tribunais de Justiça de sete estados brasileiros (Bahia, Goiás, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe), examinamos como decidem os juízes em casos de pedido de indenização motivados por discriminação racial.

Ao contrário do que ocorre nos processos criminais, em que há um baixo número de condenações por racismo, observamos nos casos de pedidos de reparação monetária um número expressivo de decisões a favor das vítimas (62%). E mais: alguns casos de racismo encaminhados à Justiça penal que não geraram condenação tiveram o desdobramento oposto na Justiça cível, levando ao pagamento de indenizações.

Uma das diferenças entre essas duas esferas é que, no âmbito cível, os critérios de comprovação da intenção do agressor são mais brandos e, ainda, há situações em que a lei permite a responsabilidade de pessoas jurídicas, como nos casos de atos praticados no comércio ou no trabalho.

Uma das nossas descobertas mais expressivas é a de que os juízes, na maioria dos casos, interpretam a discriminação racial como um dano à honra. O que isso significa? Que as ofensas são retiradas do seu sentido contextual e coletivo, dado pelo racismo estrutural, e consideradas um ato lesivo à integridade de apenas uma pessoa, o ofendido. Apesar do sucesso relativo na esfera cível, nega-se que o racismo seja um problema coletivo, reduzindo-o a conflitos pontuais com consequências limitadas.

Essa interpretação tem efeitos sobre o cálculo da indenização, cujo valor, de acordo com a legislação brasileira, deve se pautar pela extensão do dano. A discriminação racial, que muitas vezes é praticada em locais como comércios, escolas e no trabalho, pode resultar em danos à saúde mental e física das vítimas, e também contribui para a naturalização de hierarquias de raça nesses ambientes quando tratada como brincadeira ou falha de caráter de apenas um indivíduo —e não como um ato inaceitável que necessariamente gera consequências dentro e fora desses locais.

Enquanto medida de reparação, o reconhecimento da responsabilidade dos agressores é um dos caminhos para o combate ao racismo. Entretanto a média do valor das indenizações, de R$ 10 mil, revela não apenas o quão limitada é a visão dos juízes sobre a gravidade da discriminação racial como também leva à falta de responsabilização efetiva de indivíduos, empresas e instituições, que, quando condenados, pagam valores irrisórios.

Critérios supostamente neutros, como evitar que a vítima enriqueça com a indenização (o chamado “enriquecimento sem causa”) e, ainda assim, gerar algum tipo de desestímulo ao agressor de novas práticas discriminatórias, levam às distorções mencionadas. Na prática, as indenizações revelam que o poder econômico do agressor não é levado em conta e que o sofrimento das vítimas é medido por uma régua que, em 70% dos casos, não ultrapassa R$ 10 mil.

É preciso que os magistrados de todo o Brasil reflitam: o que motiva uma ofensa racial? Os insultos só fazem sentido por meio da rede discursiva estruturada pela hierarquia racial, ou seja, pelo racismo como sistema de poder, que distribui de forma desigual os atributos do que é humano. É preciso que as decisões se orientem por uma subversão dessa hierarquia.

Queremos retornar a este espaço nos próximos anos para anunciar que o Estado democrático de Direito passou a enxergar que a branquitude é parte do racismo e, portanto, deve pagar caro por isso ao lançar mão dos seus privilégios para subjugar outros cidadãos.

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