Da FOLHA

Por DRAUZIO VARELLA

Dobre a língua antes de xingar o sistema público nacional, que oferece assistência médica como nenhum outro

Na abertura da Olimpíada de Londres, os britânicos colocaram três letras no centro do gramado: NHS. Referiam-se ao National Health Service, orgulho maior do país. Imagine as críticas, prezada leitora, se tivéssemos feito o mesmo: SUS, no meio do campo naquele espetáculo que foi cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro.

O SUS é a instituição mais vilipendiada da vida brasileira. Só fizemos alguma ideia da sua importância quando nos demos conta de que sem ele a pandemia teria causado uma tragédia ainda mais devastadora.

O NHS, entretanto, é um sistema pequeno comparado ao SUS. É bem mais fácil organizar a saúde num país com 67 milhões de habitantes, dono de um império colonial até ontem, com um dos níveis educacionais mais altos do mundo e renda per capita quase quatro vezes superior à nossa.

Quero ver é levar a saúde para 213 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 52 milhões são pobres e 13 milhões vivem abaixo da linha da pobreza, espalhadas por um território de dimensão continental, com desigualdades de renda abissais. Se somarmos os brasileiros pobres com os que estão na miséria, chegamos à população do Reino Unido.

Digo essas coisas, prezada leitora, por causa de uma reportagem que li no jornal The Guardian, cujo título é “Quase 6 milhões de pessoas estão na lista de espera por tratamento hospitalar na Inglaterra”.

A lista de espera por tratamentos não urgentes inclui cirurgias de joelhos, próteses de fêmur, cataratas e muitas outras. Em outubro último, havia 5.975.216 pessoas na fila, portanto um em cada dez cidadãos do Reino Unido.

Segundo a Constituição do NHS, não menos do que 92% dos pacientes devem ser hospitalizados no máximo em 18 semanas, contadas a partir do dia em que o médico generalista pediu a internação. No entanto, 34% (mais de 2 milhões) continuam à espera além desse prazo. Pior, 312 mil aguardam vaga há mais de um ano.

Os trabalhistas acusam o governo conservador de erros administrativos na condução do NHS, que teria entrado na pandemia já com déficit de 100 mil profissionais nos serviços de saúde e 112 mil na assistência social.

Associações que reúnem médicos, enfermeiras e gestores têm alertado que a segurança dos pacientes está em perigo. O Royal College of Emergency Medicine estima que ocorram 6.000 mortes anuais por atendimento inadequado, nos serviços de emergência superlotados. O número de pessoas obrigadas a aguardar mais de 12 horas para conseguir um leito nas emergências ultrapassa 10 mil.

Caro leitor, não apresento esses dados para desmerecer o sistema britânico, um dos melhores do mundo, que foi implementado há mais de 70 anos, mas para mostrar como é difícil oferecer assistência hospitalar universal.

O Brasil dispõe de cerca de 500 mil leitos. No SUS, há dois leitos para cada mil habitantes; número que chega a 3,5 na Saúde Suplementar. Como a Organização Mundial da Saúde considera três leitos por mil habitantes o mínimo necessário, os técnicos calculam que faltam cerca de 150 mil leitos ao sistema público, enquanto sobram vagas nos hospitais particulares.

Internações custam caro e afastam os doentes dos familiares e da comunidade. A tendência moderna é a de investir na atenção primária, para evitar que as pessoas adoeçam e oferecer tratamento domiciliar para as que necessitarem.

O Brasil tem um dos programas de atenção primária mais elogiados do mundo: o Estratégia Saúde da Família, com mais de 42 mil equipes formadas por até 12 agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um enfermeiro, um médico, um dentista ou técnico em saúde bucal.

Cerca de dois terços da população recebem visitas mensais dos 265 mil agentes de saúde que atendem de casa em casa. Temos mais agentes espalhados pelo país do que soldados nas Forças Armadas. Esse
contingente, em contato com as 43 mil Unidades Básicas de Saúde, tem diminuído e poderá reduzir ainda mais o número de hospitalizações, problema que até um país rico como a Inglaterra não consegue resolver.

Com apenas 33 anos de vida, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante dele o Bolsa Família é uma pequena ajuda.

É um sistema em construção que exige participação ativa de todos nós. Financiamento insuficiente, má gestão e problemas administrativos não lhe faltam, mas ele fez a maior revolução da história da medicina brasileira. Antes de xingá-lo, dobre a língua.

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