O presidente Jair Bolsonaro, à dir., recebe o líder da Rússia, Vladimir Putin, para reunião de cúpula do Brics, no Palácio do Itamaraty

Da FOLHA

Por LÚCIA GUIMARÃES

Capitão Rachadinha não passaria num teste de estagiário para segurar a mala de quem recolhe a bufunfa do presidente russo

Na entrevista coletiva de abertura do Festival de Cannes, o cineasta e presidente do júri deste ano, Spike Lee, deu um “upgrade” no Capitão Rachadinha. Vladimir Putin deve estar rolando de rir por ter sido chamado de gângster na mesma categoria do ex-deputado que demitiu um concunhado funcionário fantasma porque ele devolvia só R$ 3.000 do salário.

O capitão não passaria num teste de estagiário para segurar a mala de quem recolhe a bufunfa do presidente russo, no caminho desimpedido para seu quinto mandato.

O terceiro gângster, que Spike Lee chamou de Agente Laranja, é, como o capitão, fichinha em outro departamento, o de desinformação. Vamos ser justos, Donald Trump não inaugurou a tradição americana de cair nas armadilhas do Kremlin. O pequeno Vladimir ainda estava na primeira dentição em São Petersburgo quando a poderosa KGB inaugurou o Departamento D, em 1957. “D’” de “dezinformatsiya”, termo cunhado naquela década pela agência para se referir a campanhas de propaganda na Guerra Fria.

No mesmo ano, o Departamento D emplacou o que seria o primeiro “furo” internacional de fake news. Plantou num jornal da Alemanha Oriental uma longa —e totalmente fabricada— carta do magnata do petróleo Nelson Rockefeller ao presidente Dwight Eisenhower.

Na carta falsa, Rockefeller pedia ao líder dos EUA que subornasse países da Ásia, da África e da América Latina, usando ajuda externa para garantir a dominação americana. O texto incorporava todos os clichês demoníacos sobre o grande capital. A carta foi traduzida e publicada por jornais mundo afora.

Nos anos 1970, o Departamento D já superava em orçamento a bem mais jovem CIA. A superioridade do Kremlin sobre a distribuição de desinformação na Guerra Fria continuou com a queda do Muro de Berlim e foi aperfeiçoada para a era digital na Rússia de Putin, um ex-agente da KGB que herdou o experiente aparato de espionagem, revoltado com a dissolução da União Soviética.

Quando Moscou começou a espalhar o rumor de que a epidemia da Aids foi produzida pelo Pentágono, em 1983, a história correu o mundo e passou mais de um ano sem contestação factual efetiva.

Enquanto Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama se iludiam na credulidade da narrativa cor de rosa sobre o desfecho triunfal da Guerra Fria, o mesmo establishment que tentou o golpe militar contra Mikhail Gorbatchov, em 1991, continuou fazendo o que fazia melhor do que qualquer comunidade de inteligência no mundo.

Com a primeira eleição de Ronald Reagan, em 1980, que estreou disposto a suspender a détente com os soviéticos, os americanos organizaram uma força-tarefa de várias agências para compreender e coordenar reações às campanhas do Departamento D.

Mas o mesmo Reagan permitiu que o esforço fosse corrompido pela trupe que protagonizou o escândalo Irã-Contras, em 1986, e começou a distribuir desinformação em casa, buscando apoio para aventuras autoritárias na América Central.

A força-tarefa sofreu a sabotagem final ao ser liderada pelo agente do FBI Robert Hanssen, desde 2001 apodrecendo numa cela com a distinção de ser o mais danoso espião a serviço do Kremlin na história dos EUA.

Até o final de 2022 vamos afundar mais no esgoto da desinformação bolsonarista. Mas tuítes delirantes sobre pedofilia e chiliques do rebento desequilibrado são coisa de amadores com medo do camburão. Cabe a nós, consumidores de realidade, tapar o nariz e resistir, até nos livrarmos do sindicato carioca do crime.

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