covarde

Da FOLHA

Por LUIS FELIPE PONDÉ

Você se considera alguém de coragem? Claro que sim! Quem, nesse mundo de Deus, ou sem Deus, teria coragem de dizer “Não sou corajoso, sou um covarde, graças a Deus”? Ironia?

Somos uns mentirosos. A covardia, e não a coragem, é a marca de nossa humanidade. Sim, eu sei. Os bonitinhos de plantão nesta segunda-feira, 7 de dezembro, dirão que deliro e que eles são a fina flor da coragem no mundo. Mentem. No escuro, lambem botas por aí. Mentem porque a mentira faz bem à saúde social. Logo, socialmente falando, faltar com a mentira é uma forma de patologia.

Sou um apaixonado pelo evolucionismo. Antes de tudo, por ser uma espécie de ópera humana: o darwinismo descreve a história do homem como um drama em que o pó toma consciência de si mesmo. Nós somos o pó clamando no deserto. Sou um darwinista por razões estéticas, antes de tudo.

É comum se falar da virtude da coragem como sendo algo “selecionado” pela evolução das espécies, mas cada vez mais tenho dúvidas quanto a isso. Pelo contrário, acho que a covardia é que foi selecionada como comportamento. Veja que machos e fêmeas alfa são raros. A maioria esmagadora prefere servir –seja lá a quem for– e, assim, garantir a janta todo dia. Pudera: quem aguenta sofrer?

E aqui, me parece, jaz a razão da covardia ser a maior de todas as “virtudes” morais na história da seleção da espécie humana: o sofrimento é insuportável, logo, o utilitarismo e sua máxima “o homem foge da dor e busca o bem-estar” é uma das provas cabais desta minha tese de segunda-feira, dia 7 de dezembro (está chegando o Natal…). O utilitarismo é a escola ética que prova que o homem é um covarde por excelência. Graças à covardia, sobrevivemos.

Mais do que isso. Gostamos de ver os corajosos sangrarem porque assim nos sentimos bem com nossa “escolha” pela covardia. Parênteses: na realidade, não acho que seja escolha, assim como não acho que exista escolha em nada de intrínseco na vida. Não se escolhe sexualidade, caráter, dons artísticos. O leitor atento sabe há muito tempo que, na verdade, sou um romântico exilado no mundo da eficácia burguesa. A gente se vira como pode.

O filme “A Salvação” (2014) do dinamarquês Kristian Levring (um dos caras que assinou o documento Dogma 95), com Mads Mikkelsen e Eva Green, é uma obra-prima de western. Quem gosta do gênero western sabe que se trata, quando o filme é bom, sempre de um “tratado moral”. A vastidão do oeste americano no cinema é a transposição para a geografia do vazio moral humano.

O filme mostra a violência que criou a riqueza do oeste americano. Da violência “moderna” das empresas que descobriram o petróleo aos índios cortando língua de mulheres pelo gosto de fazê-lo. Sim, sim, eu sei que os bonitinhos, que acham que um mundo governado por índios seria o paraíso na Terra, ficarão ofendidinhos comigo, mas pouco me importa o que eles pensam. Os ofendidinhos são uma praga a devastar o mundo do pensamento público neste início do século 21.

A violência na pequena cidade em que se passa o filme também assola o ministro religioso, o banqueiro, o xerife, e a mais simpática e indefesa das imigrantes hispânicas. Ou melhor: é a covardia que assola a pequena cidade. Se o filme ficasse apenas na violência, seria mais comum. O filme mostra como a covardia se revela no seu modo adaptado e miserável de sobreviver.

Num dado momento do filme (não vou dar spoiler), o xerife, um tal de Mallick, diz para o Jon (Mikkelsen): “Agora só restaram boas almas aqui”. Na verdade, bons cidadãos covardes. Mas quem é esse xerife? É o mesmo que negocia “a paz” com o malvado da história (Mr. Delarue), dando pessoas para ele matar, “para ganhar mais algum tempo de paz” para os bons cidadãos. E quem enfrentar o malvado estará sozinho na empreitada. Os “bons cidadãos” não estão nem aí para os corajosos.

Pergunto eu, para animar sua segunda-feira: caso você vivesse num regime totalitário, tipo nazismo ou socialismo, e seu filho pudesse arrumar um bom emprego às custas de apoiar o regime, o que você “escolheria”?

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