Do Observatório da Imprensa

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 O segundo chute na santa

Por Nelson Hoineff em 26/2/2008

A decisão da Igreja Universal do Reino de Deus de intimidar a imprensa por meio do conjunto orquestrado de ações contra a jornalista Elvira Lobato e diversos jornais – entre eles O Globo, Extra e Folha de S.Paulo – é em si um dos mais graves atentados contra a liberdade de expressão já cometidos no Brasil. Pior talvez tenha sido a iniciativa de usar o jornalismo da TV Record (Domingo Espetacular, 17/2) para desfechar um inédito ataque de 15 minutos contra a repórter da Folha.

Pior, porque a Record admitiu aí o que vinha tentando negar há anos: a ligação direta entre a emissora e a Igreja Universal. Pior, porque utilizou jornalistas – que deveriam estar ali para praticar jornalismo – com o propósito de participar de uma campanha contra o próprio direito de praticar o jornalismo. Pior, finalmente, porque utilizou a força da televisão aberta no país para disseminar um cardápio de cunho fundamentalista entre camadas particularmente pouco educadas da população.

A utilização do jornalismo da Rede Record para este fim ergue uma enorme barreira para que a emissora conquiste a credibilidade necessária para demonstrar que seus recentes saltos de audiência não são efêmeros. Essa é uma questão particularmente delicada para o futuro da TV aberta no país – e para a participação dos anunciantes no que vinha sendo uma alternativa à hegemonia da Globo no setor. Desde que apostou na clonagem da Globo como meio para ganhar fatias expressivas de sua audiência, a Record se expandiu por todos os lados. Aumentou em quase 50% sua participação no mercado, construiu núcleos de dramaturgia fora de São Paulo e aumentou consideravelmente o seu índice de profissionalização.

Um “milagre” registrado

A estratégia de se tornar mais parecida com a Globo do que a própria Globo deu certo. Uma das ferramentas mais importantes para isso foi justamente o jornalismo. A emissora ampliou fortemente sua participação nessa atividade e criou a primeira rede aberta de notícias do país. Teve a seu favor uma histórica desconfiança popular em relação ao jornalismo de sua maior concorrente – além do folclórico desinteresse de Silvio Santos em caminhar neste sentido.

Escancarar o tipo de “jornalismo” que a Record produziu na edição do Domingo Espetacular de 17/2 é de longe o maior erro estratégico cometido pela emissora desde que foi adquirida por Edir Macedo. O preço para consolidar a Record como porta-voz da Igreja Universal, particularmente em meio a um grande movimento de repressão à liberdade de expressão, provavelmente se revelará alto demais para a própria igreja. Seus efeitos tendem a ser mais devastadores que os do chute na santa.

O episódio, como muitos se recordam, ocorreu em 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora da Aparecida, a padroeira do Brasil. O bispo da Igreja Universal Sergio von Helde tacou uma imagem de Nossa Senhora a pontapés, dizendo que aquilo nada mais era do que um monte de barro, “um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado”. Os efeitos foram devastadores.

Apesar de o programa ter ido ao ar durante a madrugada, a imprensa o repercutiu e a reação popular foi enorme. A Igreja Universal não se manifestou oficialmente, mas o bispo Macedo teve que vir à cena pedir desculpas aos católicos. O bispo von Helde foi transferido para a África do Sul. Mais tarde, correu o boato – nunca confirmado – de que ele havia se convertido ao catolicismo, fato que, de qualquer maneira, a dupla Felipe e Falcão cantou em O Milagre da Santa, gravado em 2000.

Investida contra a sociedade

O chute na santa foi também o estopim que a Globo esperava para desfechar uma grande campanha contra a Igreja Universal, que incluía a divulgação de imagens de bispos tramando os métodos para tomar dinheiro dos fiéis, além de denúncias sobre enriquecimento ilícito de membros da igreja. As reações incluíram ainda, ironicamente, o ajuizamento de dezenas de ações por todo o país contra a Universal.

Os resultados foram menos devastadores do que a Globo esperava. Sobreviver foi quase um milagre, mas ainda assim a igreja levou anos para se recuperar do golpe. Na Record, ninguém mais chutou publicamente santa alguma. Contudo, a influência da igreja junto à programação se tornou cada vez mais explícita. Foi justamente o jornalismo que serviu de aval para manter a aparência de independência da emissora em relação à igreja (com a qual, em tese, a Record não mantinha vínculo algum, exceto o comercial, representado pela compra de espaços durante as madrugadas).

O fim da era Boris Casoy veio junto com uma campanha agressiva e bem-sucedida para tomar a vice-liderança de um SBT engessado e envelhecido. A Record se fortaleceu e passou a criar atritos politicamente convenientes com a líder, encostando nela freqüentemente e empurrando o mercado nessa direção. A credibilidade de um jornalista como Casoy jamais foi substituída, mas a imagem de independência perdurou em grande medida até o domingo (17/2).

A execração primária de uma jornalista como Elvira Lobato vai além de picuinhas comerciais com empresas do porte da Globo, da Folha, do SBT. Aponta para a manipulação grosseira de profissionais do jornalismo que atuam dentro da emissora e para a intimidação de jornalistas que atuam fora dela. Isso nada tem a ver com fé, mas tem tudo a ver com ética e com a observância de preceitos constitucionais. Ao atacar a jornalista da Folha com a leviandade com que o fez, a emissora investiu contra a sociedade brasileira e contra a liberdade de expressão que ela conquistou – um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado.

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