Da FOLHA
Por CRISTIANE GERCINA
As duas são mães agredidas pelos maridos; a coragem da primeira trouxe proteção para a segunda, mesmo ela negando as medidas protetivas
Embora não conheçamos —e talvez nunca conheceremos— as profundidades do relacionamento de Ana Hickmann e Alexandre Correa, certamente as agressões sofridas pela modelo e apresentadora não começaram neste domingo (12), quando procurou a polícia para denunciar o então marido.
A história de Ana Hickmann se conecta com a de muitas outras mulheres, especialmente à de Maria da Penha, que deu nome à lei de proteção feminina contra violência doméstica. A coragem dela salvou a vida da apresentadora, mesmo com Hickmann negando as medidas protetivas da lei.
As histórias e entrelaçam em vários pontos. As duas são mães e as duas foram agredidas pelos maridos. Nos dois casos, nenhuma delas percebeu que homens educados e bem-apessoados pudessem ser algozes de dias de sofrimento.
Volto a repetir que, embora não conheçamos as profundidades da história de Ana Hickmann, certamente as agressões começaram antes, e certamente foram presenciadas pelo filho algumas vezes, não apenas no domingo que levou a apresentadora à polícia.
Violência contra mulher não é só física, não é caso isolado e quando chega às vias de fato, demonstra ser um comportamento extremo de algo que se arrasta por meses, talvez anos, vindo de quem acha que é dono de alguém, como se possuísse um objeto.
As histórias de Ana Hickmann e Maria da Penha se entrelaçam em vários momentos, especialmente quando a apresentadora decide denunciar o marido, recebendo apoio da sociedade e salvando sua vida. Foi Maria da Penha quem abriu esse caminho.
E precisou que ficasse paraplégica para que o respeito à mulher vítima de violência seja exercitado por uma sociedade que ainda perdoa o agressor e culpa a vítima.
A cearense Maria da Penha é farmacêutica e bioquímica. É uma mulher dona de si, graduada e pós-graduada em boas universidades públicas. Foi na pós-graduação que conheceu Marco Antonio Heredia Viveros, colombiano por quem se apaixonou, com quem se casou e teve três filhas.
Maria da Penha começou a ser agredida de forma contínua alguns anos depois do casamento, mas perdoou o agressor algumas vezes, em um ciclo que começa com agressão, passa por arrependimento, tem momentos de carinho e volta a ser violento novamente.
As violências cresceram ao longo do tempo até que, certa noite, o então marido deu um tiro em suas costas, enquanto ela dormia, e a deixou paraplégica, fazendo-a passar quatro meses no hospital. Ao voltar para casa, ele tentou eletrocutá-la.
Maria da Penha não percebia as violências no início. Elas começam com atos insignificantes, corriqueiros do dia a dia, palavras, proibições, pequenos desentendimentos. Têm início com leves grosserias, com a negativa em colaborar, diminuindo a opinião, as preferências e os desejos da mulher, questionando suas escolhas profissionais e maternas.
A farmacêutica denunciou várias vezes o agressor, em vão. A primeira tentativa de homicídio ocorreu em 1983, mas somente em 2006 a lei com seu nome foi aprovada e sancionada, após o caso ganhar repercussão internacional, levando o estado a ser condenado por negligência em 1998.
O agressor foi condenado a dez anos de prisão apenas em 2002. Do total, passou dois na cadeia e seis em regime semiaberto. Até hoje, o machismo social questiona a condenação. Se buscarmos no Google algo sobre ele, a primeira reportagem é sobre sua possível inocência.
Nesta segunda (13), na busca por Ana Hickmann, as respostam na internet eram de reportagem sobre o empresário negar as agressões à apresentadora, confirmadas por ele depois.
O caminho percorrido foi longo, ficou menos árido, mas há ainda muito o que se caminhar, especialmente quando se é agredida na frente de um filho. Essa dor dói mais.