Da FOLHA

Por SILVIO ALMEIDA

Não existe democracia onde pessoas possam emitir opiniões com armas na cintura

O primeiro passo para enfrentar uma situação difícil é admitir que a situação existe.

Então, para que que possamos dar este primeiro passo é preciso dizer com todas as letras que o Brasil não é uma democracia e nem uma República. Se um dia foi —e há bons argumentos para sustentar o contrário— hoje, definitivamente, não é mais.

Havia antes a ideia de que éramos uma “jovem democracia”. Pois bem: essa “jovem” democracia morreu antes de chegar à fase adulta, como morrem os jovens nas periferias, na maioria negros, assassinados pelas tais “balas perdidas”.

Não pode ser considerado democrático um país em que pessoas com armas na cintura se sintam autorizados a participar do debate público.

Tornou-se normal no Brasil que militares emitam notas “criticando” políticos, membros do judiciário e até se posicionando sobre temas eleitorais. Isso deveria ser uma anomalia porque, em última instância, a arma na cintura torna a pretensa crítica uma ameaça, independentemente de qual seja a real intenção de quem emitiu a nota.

Por isso, em sociedades minimamente organizadas, militares são proibidos de opinar sobre política ou mesmo dela diretamente participar porque parte-se do pressuposto de que não é possível negociar em termos republicanos e democráticos com pessoas armadas.

Militares deveriam ser agentes de Estado e não de governo e essa é a diferença fundamental entre um exército e uma milícia. Nada há na Constituição Federal que dê às Forças Armadas a condição de “poder moderador” da República. E se houvesse algo do tipo poderíamos dizer sem subterfúgios que o Brasil não é um país democrático nem do ponto de vista formal, até porque culturalmente já sabemos que não é.

Tampouco cabe o papo furado de que nesse caso seria melhor que todos andassem armados. Isso é conversa de miliciano ou de quem está preso a algum mundo delirante de filmes de faroeste.

Quando pessoas armadas se sentem confortáveis, mesmo ao arrepio da lei, para “criticar” decisões judiciais ou matérias jornalísticas é porque passamos de todos os limites. E sem limites não há responsabilidade e sem responsabilidade não há nem democracia e nem republicanismo.

Precisamos admitir que não mais flertamos com o abismo, mas que dentro dele já estamos. Neste exato momento, com um presidente abertamente golpista e com os demais poderes capturados, perplexos ou coniventes não há como sustentar que vivemos em normalidade democrática ou sob um Estado de direito. Nossa única regra é a exceção e nossa política é baseada no medo.

O medo é um sentimento ambíguo, pois pode nos conduzir a duas posturas distintas. A primeira delas é a paralisia e a capitulação. Às vezes o medo é tanto que, para escaparmos de uma situação ruim, nos entregamos ainda mais a quem nos amedronta.

E é com isso que contam aqueles que nos ameaçam. Querem que vejamos neles a solução para os problemas que eles mesmos causam. Por isso é paradoxal suplicar às Forças Armadas para que sejam os fiadores da democracia e nos salvem de um golpe de Estado que só elas, Forças Armadas, poderiam de fato perpetrar. Isso é síndrome de Estocolmo, não democracia.

A segunda postura que se relaciona com o medo é a coragem. A coragem não está na ausência do medo, mas na disposição para enfrentá-lo. Falo aqui não de coragem apenas em termos morais, do tipo que pode empurrar indivíduos para o sacrifício individual.

Trato aqui da coragem como virtude cívica, que em termos aristotélicos se refere ao meio-termo entre o medo e a confiança, algo que se constrói no curso da ação política. Nesse contexto, todo ato de coragem é também um ato político de cuidado para com o país.

O Brasil está em cativeiro e sob tortura e nossa missão, ainda que diante do medo, é garantir que aqueles que nos amedrontam voltem para o lugar de onde nunca deveriam ter saído.

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