Da FOLHA

Por GUILHERME BOULOS

Na vida psíquica, ninguém abre mão do que lhe causa prazer

Falta de empatia, desprezo pela vida dos outros, ausência de remorso, tendência para enganar e mentir compulsivamente. Nos manuais de psiquiatria, essas características são associadas ao “transtorno de personalidade antissocial”, base da psicopatia e da sociopatia. No Brasil de 2021, difícil ler essas linhas e não pensar no presidente da República. A aproximação gritante já tem sido apontada por estudiosos da área.

Christian Dunker tem razão em ponderar que condutas como a proteção aos filhos —elevada quase a política de Estado— e a falta de uma fria inteligência estratégica distanciam Bolsonaro do psicopata clássico. Dunker enxerga o presidente mais à luz de uma paranoia sistêmica, operando fantasmas de perseguição e conflitos.

Não pretendo aqui exercitar psicanálise selvagem. Até porque reduzir a política de Bolsonaro a qualquer diagnóstico poderia sugerir sua ausência de responsabilidade. Ou ainda provocar um preconceito reverso contra quem sofre do referido quadro clínico. Mas sua postura diante de quase 300 mil mortos já ultrapassou faz tempo as fronteiras da política. Estamos no terreno da perversidade humana.

Num artigo de 1916 sobre tipos de caráter, Freud mostra como o ressentimento infantil é capaz de produzir monstros. Certas pessoas que sofrem humilhações e padecem de um sentimento de inferioridade terminam por, numa inversão psíquica, desenvolver uma personalidade cruel, algo como uma vingança paranoica contra o mundo. É o espírito de Ricardo 3º, personagem shakespeariano que “compensa” seus sofrimentos pela deformidade física fazendo um reinado perverso.

Num incrível podcast, a jornalista Carol Pires reconstituiu o ambiente da infância de Bolsonaro na cidade de Eldorado Paulista. Recuperou seu ressentimento em relação a Jaime Paiva, liderança política local e pai de Rubens Paiva, deputado cassado e morto pela ditadura; seu sentimento de que as dificuldades da família e da cidade vinham dos territórios quilombolas do entorno, em áreas ricas de… nióbio. Impossível não reconhecer o repertório.

Embora a formação psíquica de um ser humano seja sempre complexa, o fato é que o Brasil está refém da crueldade de um homem. Alguém que, diante do sofrimento do outro, não sente solidariedade, mas desprezo. Alguém que sente gozo com a morte, assim como sempre revelou sentir com a tortura.

E ele não vai parar sozinho. Da mesma forma que, na política, ninguém abre mão do poder por conta própria, na vida psíquica ninguém abre mão do que lhe causa prazer. Vamos passar de 300 mil mortos.

Chegaremos a 400 mil? O que mais falta para as instituições acabarem com esse jogo macabro de sadismo?

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