Memórias do cárcere

Por SÓCRATES

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Quanto mais a sociedade se moderniza e tabus são quebrados, o futebol, parece, caminha para trás. Eu tinha apenas 14 anos quando os estudantes franceses tomaram as ruas de Paris para lutar por suas convicções. Aquelas manifestações tornaram-se um marco na história contemporânea da humanidade. Romperam-se dogmas e a filosofia que pregava a paz e o amor invadia cada canto de nossas mentes para nos mostrar a nova ordem.

Fomos contaminados por aquela pregação simples e definitiva. Passamos a viver em harmonia com nossas características e a respeitar nosso ser. Todos os povos do mundo, de alguma forma, foram estimulados a rever os seus conceitos.

Nós, cá abaixo do Equador, talvez tenhamos sido os mais entusiastas da nova ideia. Por nossa forma de encarar o mundo, por nossa cultura e pela miscigenação, que nos deram uma capacidade de amar e libido incomparáveis, abraçamos plenamente a liberdade sem limites.

Em plena adolescência, eu não podia ter sido mais contaminado. Apesar da timidez que insistia em atrapalhar os sonhos mais íntimos, pude sentir intensamente a maravilha da libertação sexual dessa geração. Nossos pais, que haviam sido criados em uma situação diametralmente oposta, nada puderam fazer contra aquela onda. Namorei à vontade, comecei a chegar em casa cada vez mais tarde, frequentava as festas que queria e, mesmo com os inevitáveis confrontos de geração, pudemos resistir.

Seis anos depois – na época, parecia uma eternidade –, cheguei ao meio do futebol. A primeira e definitiva instituição com que tomei contato foi com a famigerada “concentração”. Era inacreditável que naqueles tempos tão “modernos” ainda se utilizasse tamanha aberração.

No início, o isolamento compulsório às vezes ultrapassava 48 horas a cada jogo. Como fazíamos duas partidas por semana, tínhamos menos tempo livre do que os condenados em regime aberto. O pior é que ficávamos em uma casa apertada, cheia de beliches, literalmente uns em cima dos outros.

De cara, passei a questionar aquela prática. Não podia entender como as razões de sua existência podiam ser tão frágeis. “Para que vocês não façam besteiras”, diziam. Até parece! E o pior é que entre as besteiras incluía-se o sexo. Ora, façam-me o favor. Desde quando o ato sexual atrapalha o quer que seja? Só se for na cabeça dos gênios que comandam o futebol.

Com o tempo, consegui encurtar o absurdo: 24 horas no máximo. Ainda era muito. Como estava na faculdade, passei a me escalar nos plantões de sábado. Assim, não perdia o meu tempo naquela escola que só ensina a não fazer absolutamente nada.

A pior coisa do mundo é a ociosidade. E isso é o que não falta num ambiente desses. Também descobri que o que provoca o desatino de beber em demasia (ou o uso de outras drogas) e da busca incessante por mulheres é exatamente essa prisão.

Imediatamente após a libertação se quer fazer tudo o que não pôde ser feito. E isso, em poucas horas. É o resgate do tempo inutilizado. É a compensação. É uma forma de reagir. É a insubordinação sem controle, é verdade. Mas não tenho dúvidas de que é da concentração que nascem os desvios de conduta de nossos jogadores. De orgias a baladas, passando pelo assédio sexual. Ora, deixem os meninos crescer!

Chegando ao Corinthians, com a implantação da Democracia Corintiana, um dos assuntos mais interessantes para mim era a dita-cuja. A turma não queria, porém, mudar. Também, a concentração serve para protegê-los da opinião pública! Demoramos seis meses para torná-la opcional.

A partir daí, a vida passou a ser uma maravilha. Ficávamos em casa, brincávamos e educávamos nossos filhos, jantávamos com nossas famílias, comíamos o que estávamos habituados com o tempero que gostávamos, dormíamos com nossas mulheres, fazíamos sexo – por que não? – à noite e quase sempre pela manhã, tomávamos nosso café, acompanhados de nosso jornal predileto, líamos um livro antes de ir para o hotel, chegávamos com a família, nos confraternizávamos e íamos todos no ônibus para o estádio.

Corríamos como crianças. Tínhamos prazer em jogar, nos divertíamos e divertíamos nosso fiel público. Era um tesão. Tesão de viver e atuar com liberdade, porém com maior responsabilidade em relação ao nosso trabalho. Os resultados todos conhecem, mas o mais importante de tudo gerado por lá foi a maturidade adquirida por todos os companheiros. Muito diferente dos dias de hoje ou da própria história dos jogadores brasileiros

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