Apostando na impunidade

Do ESTADÃO

EDITORIAL

Ao premiar Bruno Henrique com uma multa irrisória e liberá-lo para jogar, a Justiça Esportiva, na prática, legitima a manipulação de apostas, conspurcando o futebol brasileiro

O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) derrubou na quinta-feira passada a punição imposta ao jogador Bruno Henrique, do Flamengo, por manipulação de apostas esportivas. Ao impor apenas uma sanção pecuniária insignificante, a Justiça Esportiva na prática sinalizou que fraudes nas chamadas bets são desimportantes.

É um desastre sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, isso lança uma nuvem de dúvidas sobre o futebol brasileiro. Ao não punir de forma adequada quem comprovadamente desvirtuou o jogo para auferir ganhos pessoais, o STJD estabeleceu jurisprudência que incentiva outros jogadores a delinquir. Ninguém saberá ao certo, nem torcedores nem apostadores, se o que está acontecendo no jogo é resultado de uma disputa limpa ou se se trata de armação.

Flagrado em investigações da Polícia Federal (PF) combinando com o próprio irmão, para o fim de apostas esportivas (bets), forçar um cartão amarelo em uma partida de 2023 contra o Santos, Bruno Henrique vinha atuando normalmente pelo Flamengo por força de um efeito suspensivo.

Num primeiro julgamento, em setembro passado, o STJD suspendeu o atleta por 12 partidas. Agora, Bruno Henrique foi absolvido da acusação prevista no artigo 243-A do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que dispõe sobre condutas contrárias à ética esportiva com a intenção de alterar o resultado de partida ou competição.

Apesar da contundência das mensagens divulgadas pela PF (em certo momento, o irmão de Bruno Henrique fala em “guardar o dinheiro” para garantir o que classificou de “investimento com sucesso”), o STJD reformou sua decisão anterior, liberando o jogador para atuar.

O STJD puniu Bruno Henrique apenas com uma multa irrisória de R$ 100 mil, com base em artigo que prevê sanções para quem descumpre ou dificulta o cumprimento de regulamentos de torneio.

A falta de critério do STJD salta aos olhos. Em 2023, Eduardo Bauermann, então zagueiro do Santos, foi banido do futebol por 360 dias e impedido de jogar em qualquer lugar do mundo por combinar que levaria um cartão amarelo num jogo do Campeonato Brasileiro para favorecer uma quadrilha que manipulava apostas. E o zagueiro nem chegou a cumprir o combinado com os bandidos. Embora os casos sejam idênticos, Bauermann e Bruno Henrique foram punidos de forma totalmente diferente. Não se pode condenar quem suspeite de que tenha havido leniência em favor do Flamengo em razão de seu poderio econômico e social.

Não bastasse ser ruim, a decisão do STJD ocorre com um atraso inexplicável. Entre apelações, arquivamento, reabertura e pedidos de vista, o caso de um cartão amarelo forçado em novembro de 2023 só foi concluído dois anos depois.

Enquanto isso, em outros países, o vínculo entre apostas esportivas e cartões amarelos suspeitos tem provocado discussões bastante relevantes. Na Austrália, por exemplo, jogadores pediram à confederação de futebol local que apostas esportivas relacionadas a cartões amarelos fossem proibidas, algo em que o Brasil faria bem em se inspirar.

O motivo é óbvio: jogadores podem provocar deliberadamente situações de jogo que são passíveis de advertência com cartão amarelo. Logo, não são eventos aleatórios, mas provocados, o que é claramente passível de manipulação.

Esse é um dos tantos aspectos problemáticos da indústria de apostas esportivas que se instalou no Brasil e é onipresente no futebol e na publicidade. Este jornal desde sempre se posicionou contra a liberação das bets no País, por ser danosa para o bolso e a saúde mental dos cidadãos e por abrir uma avenida para a lavagem de dinheiro do crime organizado. Uma vez que a jogatina foi liberada, que ao menos seja objeto de dura regulação.

Não é isso o que se vê, contudo. Além de promover modalidades de apostas que são sujeitas a manipulação, as bets são taxadas em irrisórios 12%. Quando o governo quis elevar a alíquota para 18%, o Congresso rejeitou, mostrando a força do lobby das apostas online.

Tudo isso deixa claro como o Brasil ainda está longe de ter um arcabouço jurídico e tributário adequado para lidar com o fenômeno corrosivo das apostas esportivas. A punição risível a Bruno Henrique amplia a sensação de que, nesse esporte, quem joga conforme as regras é bobo.

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