Odete Roitman foi uma revolução cultural

Da FOLHA

Por MARILIZ PEREIRA JORGE

  • Personagem é a catarse de mulheres que não possuem medo de envelhecer; ao contrário: assumem vaidade, desejo e ambição
  • Priorizar carreira, prazer e limites não é desamor nem egoísmo, é autorrespeito

Odete Roitman de Deborah Bloch foi uma revolução cultural em horário nobre. Digo sem medo de hipérbole, ela torceu o modo como o Brasil olha para uma mulher de 60 anos. O país passou a enxergar a pessoa antes da data no RG. Sai a senhorinha, entra a protagonista de si. A TV não só contou uma história como também reorganizou a cabeça do público. Quando uma sexagenária aparece potente, desejante, mandona, sem pedir desculpas, a plateia precisa recalibrar o olhar.

Odete não prestava. Era a vilã clássica: fria, arrogante, vingativa. Ainda assim abriu um atalho para a liberdade de muitas mulheres. Não é exagero dizer que uma personagem de TV deu lastro a um debate que pode transformar a sociedade. Ela bagunçou o imaginário coletivo, aquele que nos aposenta à revelia da vida profissional, social e sexual. Esfregou a idade na cara do país e avisou que não ia se disfarçar de velha para tranquilizar ninguém. Virou sinônimo de uma mulher bem resolvida, prática, segura, dona da si.

Ela nos obrigou a encarar a hipocrisia que ainda reina. Quantas vezes a cultura exige que envelheçamos invisíveis, com o cabelo da discrição e as roupas da renúncia? O país descobriu, entre horror e fascínio, que maturidade pode ocupar o centro da cena em que a juventude insiste em ser protagonista.

O tempo também jogou a favor dela — e de nós. A expectativa de vida cresceu, a medicina alongou horizontes da população feminina que sempre cuidou mais da saúde. O resultado é uma geração 60+ com pulmão, agenda, vontades e projetos. A sociedade vai ter de aceitar sua presença no trabalho, nos aplicativos, nos bares e academias, de mochila nas costas pelo mundo.

No campo profissional, homens entravam como acessórios de sua ambição, ferramenta de projetos, não como tutela. Fez aliados circunstanciais, que eram peças de negociação, nunca centro da narrativa. Odete tratou o masculino como meio, não como fim. Isso, por si só , já é uma heresia num mundo que espera mulheres gratas, não ambiciosas.

Na vida afetiva, inverteu outro roteiro: homens tinham papel secundário na sua felicidade. Ela fez o que muitas ainda temem, curtir a companhia masculina sem a necessidade de um contrato, ainda que informal. Sem rótulos, sem pensar no dia seguinte, sem transformar cada encontro em projeto de futuro. Prazer pelo prazer, leveza sem culpa.

É aqui que mora a redenção que interessa: assumir escolhas sem pedir absolvição. O que costumam chamar de egoísmo quando mulheres colocam seus desejos à frente, Odete traduziu como autonomia. Priorizar carreira, prazer, tempo e limites não é desamor, é autorrespeito. Sua personagem autorizou identidades clandestinas a saírem do armário. Ao dizer em público o que tantas pensam e sentem em privado, deslocou a culpa para o lugar certo, a cultura que cobra sacrifício feminino como prova de valor.

No fim, tanto faz se Odete Roitman morreu no folhetim. Na década de 1980, ela foi punida com a morte, com a conivência do público, não apenas pela frieza e crueldade, mas porque sua falta de caráter era também relacionada à autonomia e à liberdade sexual, que afrontavam o combinado social. O Brasil daqueles anos, moralista e machista, como ainda é hoje, não negociava com mulheres independentes e insubmissas. Em 2025, Odete Roitman é a catarse de um movimento de mulheres que se escolhem: dizem a idade em voz alta, assumem vaidadedesejo, ambição e recusam voltar para o lugar de coadjuvante.

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