Por que não endosso a SAFiel do Corinthians

Do ESTADÃO

Por RODRIGO CAPELO

Projeto é sucesso se propaganda, mas chance de execução é mínima

Apresentada ao público como alternativa à reestruturação do Corinthians, a SAFiel é um sucesso de propaganda. As chances de execução no mundo real, no entanto, são mínimas. E as consequências da estratégia de seus idealizadores são perigosas.

O problema começa na legitimidade do projeto. Faz 115 anos que o futebol pertence à associação civil Sport Club Corinthians Paulista. Simbolicamente, milhões de torcedores se sentem donos. Mas o fato é que existe uma entidade constituída por milhares de sócios, eles sim proprietários, que elegem conselheiros e presidente.

A SAFiel não perguntou se os associados do Corinthians querem vender o futebol. Na verdade, ela sabe que não. Até outro dia, SAF era palavrão no Parque São Jorge. Então o que os seus idealizadores fizeram? Criaram uma estratégia de promoção baseada em “nós contra eles”. Eles, os sócios do clube, todos supostamente corruptos e inaptos.

A estratégia tem o mérito de virar discussão na opinião pública. O corintiano está desesperado com a crise generalizada no clube, a SAFiel diz que tem a solução. Só que ela tem um efeito colateral: interdita a negociação com quem decide, os associados.

As consequências de uma venda forçada, “de fora para dentro”, podem ser péssimas. Em um projeto centrado na repercussão, há incentivo à intimidação. Nas redes sociais, nos espaços frequentados por corintianos. Eu não quero fazer parte disso.


Concentração de poder para torcedores ricos

O projeto tem mais furos em seu casco. A SAFiel propõe uma SAF que pertenceria ao Sport Club Corinthians Paulista e à Invasão Fiel SA — esta responsável por indicar a maior parte dos membros da gestão, e, portanto, controladora.

A governança foi bem idealizada, com Conselho de Administração e Conselho Fiscal compostos por membros independentes e outros indicados por cada acionista.

Só que no meio desses órgãos seria inserido o Comitê de Governança. Ele teria cinco membros, todos indicados pela Invasão Fiel SA, desde que cumpram um pré-requisito. Qual é ele? Que sejam investidores com mais de 10.000 ações ordinárias. Em português compreensível: pessoas que invistam pelo menos R$ 2 milhões em ações.

Essas pessoas não tomariam decisões na administração, mas elas teriam o poder de validar — ou vetar — todos os integrantes de Conselho de Administração, Conselho Fiscal, Conselho Cultural e diretores estatutários. Ou seja, um torcedor que invista R$ 200 poderá votar nos candidatos que forem aprovados pelo grupo de milionários.

Estive com Carlos Ferreira, um dos quatro idealizadores da SAFiel, na segunda-feira, para expor antes as minhas críticas a ele. Perguntei se esse modelo de comitê gera concentração de poder nas mãos de poucos e abastados corintianos. Ele disse que sim e afirmou que a proposta deverá ser alterada nesse ponto em uma versão futura.

Admiro a ambição de se criar uma empresa de propriedade dos torcedores, gerida por eles. Mas é meu trabalho mostrar a história inteira. Se uma dúzia de milionários vai decidir quem o povo pode votar, a alegada democratização fica pela metade.


Alto risco nas projeções financeiras

Depois, há um considerável risco de o projeto financeiro não se cumprir. A SAFiel afirma que captará entre R$ 1,6 bilhão e R$ 2,75 bilhões, dinheiro que seria usado no pagamento de dívidas e na reestruturação do futebol do Corinthians.

De onde viria a verba? R$ 1 bilhão, de investidores “institucionais”. Eles comprariam ações preferenciais (sem direito a voto ou participação na gestão da SAF), com foco em retorno financeiro. E como obteriam o retorno? Com a revenda das ações depois de alguns anos por valor maior, conseguido graças à valorização do Corinthians.

Não há precedente no Brasil para o que se propõe. Investidor de SAF, quando compra parte de um clube de futebol, costuma buscar o capital majoritário e o controle sobre a administração, para não ficar refém de um sócio talvez ruim. John Textor, Ronaldo, 777 Partners, City Football Group, Rubens Menin. Todos compraram mais de 70% das SAFs.

O retorno financeiro prometido também é de se questionar. A Safiel não pagaria dividendos, como todo outro clube, porque o lucro seria reinvestido no futebol. Logo, sobra a potencial valorização do ativo (a ação preferencial da SAF) para a revenda daqui a cinco, dez anos. O problema, neste caso: este mercado ainda não existe. E, se ele não existir logo, não haverá investidores que comprem esses papéis (por preços mais altos).

Aqui não se trata de estar certo ou errado. Pode ser que daqui a dez anos os clubes brasileiros estejam na Bolsa de Valores, ou que um novo mercado se constitua e haja liquidez. A questão é que, hoje, apostar R$ 1 bilhão nesse tipo específico é um risco tremendo. As teses de investimento que predominam passam longe de papéis preferenciais sem direito a voto, ou participação na administração do ativo.

O resto do dinheiro? Dos próprios torcedores, quando eles comprassem as suas ações ordinárias (com direito a voto). R$ 200 milhões do pote popular, R$ 600 milhões de uma “classe média”, R$ 450 milhões de pessoas que investirem pelo menos R$ 3 milhões. De novo, não há precedentes para tal captação entre clubes de futebol no mundo.

Perguntei ao idealizador da Safiel: e se o dinheiro não aparecer? Ele respondeu: o projeto é interrompido e não vai para frente. Como não é vinculante (não gera obrigações entre as partes), ele disse, não haveria prejuízo para ninguém.


Construção de narrativas

Em meu encontro com Ferreira, ele me repreendeu quando usei o termo “compra e venda”. Segundo o entendimento dele e dos outros idealizadores da Safiel, não se trata de uma compra do futebol do Corinthians, mas da criação de uma sociedade.

Disse a ele e repito: não faz o menor sentido. O Sport Club Corinthians Paulista hoje é dono de 100% do ativo (o futebol) e tem R$ 2,7 bilhões em dívida. Se a Invasão Fiel SA quer assumir 51% do capital, por exemplo, em troca da responsabilidade sobre a dívida, é óbvia a caracterização da operação como compra e venda. Eles querem comprar pela dívida.

Um advogado poderá dizer que, tecnicamente, clube nenhum foi vendido. Associações civis, sem finalidade econômica, elas firmaram acordos com terceiros por meio de subscrições em aumentos de capital. A tecnicidade tem importância no ambiente jurídico, nos contratos e na adequação às leis. Só não tentem engambelar torcedores. A Red Bull comprou o futebol do Bragantino, a Safiel quer comprar o do Corinthians.

O esforço em medir as palavras tem porquê. Como a Safiel centrou a sua estratégia, “de fora pra dentro”, no convencimento da opinião pública e na intimidação aos sócios do clube, nada pode fugir daquilo que o torcedor considera sagrado. E o Corinthians, clube do povo, não se vende nunca. Para conciliar realidade e narrativa, desdobram-se.

Aliás, nesse cenário de “nós contra eles”, preciso ressaltar: sou favorável a uma SAF para o Corinthians. No mínimo, para separar formalmente o clube social do futebol profissional, para a criação de nova governança e para incentivar a profissionalização radical. Também porque haverá impostos impagáveis para a associação, por causa da reforma tributária, então faz sentido que se aproveite o momento para constituir a SAF.

Fundamentar críticas à Safiel também não me faz partidário dos dirigentes amadores que destruíram o clube nos últimos anos. Andrés Sanchez, Duilio Monteiro Alves, Augusto Melo, este um dos piores cartolas que já vi, fui crítico a todos eles em artigos de opinião e reportagens nos últimos anos. Desta polarização que se criou, estou fora.

O caminho para reestruturar o Corinthians é de dentro para fora, como fizeram outros clubes. O Vasco dos filhotes de Eurico Miranda foi capaz de conduzir esse processo a partir da vontade de seus sócios e conselheiros. O Botafogo de Carlos Augusto Montenegro, o Cruzeiro de Zezé Perrella, o Bahia de Paulo Maracajá. Em todos esses ambientes políticos, por piores que fossem alguns elementos, os sócios designaram representantes e tomaram as decisões. É assim que se legitima projeto tão relevante.

Facebook Comments

Posts Similares

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.