Do THE NEW YORK TIMES

Por DANIEL BARENBOIM

A Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven foi executada pela primeira vez há exatos 200 anos na terça-feira e, desde então, tornou-se, provavelmente, a obra com maior probabilidade de ser abraçada para fins políticos.

Foi tocada nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim; foi realizada naquela cidade, novamente, no Natal de 1989 após a queda do Muro de Berlim, quando Leonard Bernstein substituiu a palavra “Joy” no final coral por “Freedom”; a União Europeia adotou o tema “Ode à Alegria” da sinfonia como hino. (Atualmente, a Nona está sendo tocado em salas de concerto em todo o mundo em comemoração à estreia. O mundo da música clássica adora aniversários.)

Beethoven ficaria surpreso com o fascínio político de sua obra-prima.

Ele era interessado em política, mas apenas porque estava profundamente interessado em humanidade. Conta a história que originalmente queria dedicar sua sinfonia “Eroica” a Napoleão – era para ser chamada de “Bonaparte” – mas ele mudou de ideia depois que Napoleão abandonou os ideais da Revolução Francesa e foi coroado imperador.

Não acredito, no entanto, que Beethoven estivesse interessado na política cotidiana. Ele não era um ativista.

Em vez disso, ele era um homem profundamente político no sentido mais amplo da palavra. Ele estava preocupado com o comportamento moral e as questões maiores de certo e errado que afetavam toda a sociedade. Especialmente significativa para ele foi a liberdade de pensamento e de expressão pessoal, que associou aos direitos e responsabilidades do indivíduo. Ele não teria simpatia pela visão agora amplamente difundida da liberdade como essencialmente econômica, necessária para o funcionamento dos mercados.

O mais próximo que ele chega de uma declaração política na Nona é uma frase no coração do último movimento, em que vozes foram ouvidas pela primeira vez em uma sinfonia: “Todos os homens se tornam irmãos”. Entendemos isso agora mais como uma expressão de esperança do que uma declaração confiante, dadas as muitas exceções ao sentimento, incluindo os judeus sob os nazistas e membros de minorias em muitas partes do mundo. A quantidade e o alcance das crises enfrentadas pela humanidade testam severamente essa esperança. Já vimos muitas crises antes, mas parece que não aprendemos lições com elas.

Também vejo a Nona de outra forma. A música por si só não representa nada além de si mesma. A grandeza da música, e da Nona Sinfonia, reside na riqueza de seus contrastes. A música nunca apenas ri ou chora; sempre ri e chora ao mesmo tempo. Criar unidade a partir de contradições – isso é Beethoven para mim.

A música, se você a estuda corretamente, é uma lição para a vida. Há muito que podemos aprender com Beethoven, que foi, naturalmente, uma das personalidades mais fortes da história da música. Ele é o mestre em unir emoção e intelecto. Com Beethoven, você deve ser capaz de estruturar seus sentimentos e sentir a estrutura emocionalmente – uma lição fantástica para a vida! Quando estamos apaixonados, perdemos todo o senso de disciplina. A música não permite isso.

Mas música significa coisas diferentes para pessoas diferentes e, às vezes, até coisas diferentes para a mesma pessoa em momentos diferentes. Pode ser poético, filosófico, sensual ou matemático, mas deve ter algo a ver com a alma.

Portanto, é metafísico – mas o meio de expressão é pura e exclusivamente físico: o som. É justamente essa convivência permanente da mensagem metafísica por meios físicos que é a força da música. É também a razão pela qual quando tentamos descrever a música com palavras, tudo o que podemos fazer é articular nossas reações a ela, e não apreender a música em si.

A Nona Sinfonia é uma das obras de arte mais importantes da cultura ocidental. Alguns especialistas a chamam de a maior sinfonia já escrita, e muitos comentaristas elogiam sua mensagem visionária. É também uma das obras mais revolucionárias de um compositor definido principalmente pela natureza revolucionária de suas obras. Beethoven libertou a música das convenções vigentes de harmonia e estrutura. Às vezes sinto em seus últimos trabalhos uma vontade de quebrar todos os sinais de continuidade.

O filósofo italiano Antonio Gramsci disse uma coisa maravilhosa em 1929, quando Benito Mussolini tinha a Itália sob seu polegar. “Minha mente é pessimista, mas minha vontade é otimista”, escreveu ele a um amigo da prisão. Acho que ele quis dizer que, enquanto estivermos vivos, temos esperança. Tento levar a sério as palavras de Gramsci ainda hoje, mesmo que nem sempre com sucesso.

Ao que tudo indica, Beethoven foi corajoso, e acho que a coragem é uma qualidade essencial para a compreensão, quanto mais para o desempenho, da Nona. Pode-se parafrasear grande parte da obra de Beethoven no espírito de Gramsci dizendo que o sofrimento é inevitável, mas a coragem de superá-lo faz a vida valer a pena ser vivida.


Tradução: Blog do Paulinho

Facebook Comments