Terraplanismo anti-identitário

Da FOLHA
Por DODÔ AZEVEDO
Publicar Fake News contra o identitarismo avaliza crimes de ódio contra minorias
Em Nilópolis, município da baixada Fluminense onde passei parte da minha infância, era famoso um senhor que passava as tardes encostado no balcão do bar com a cara emburrada de quem perdeu relevância, e jeito de quem culpava os outros por seus fracassos. Ali, ele observava um mundo que se movia em transformação, e em seu íntimo sabia que era algo sem volta. E odiava.
O dia inteiro, o homem então grunhia comentários misóginos para as mulheres que passavam na rua, homofóbicos com os homens pouco viris que caminhavam na calçada, xenofóbicos pessoas diferentes dele, gordofóbicos com quem estava acima do peso, e racistas com dente de pele preta.
Quando íamos ao bar para comprar chicletes, o senhor frustrado nos contava a lenda da Kombi que leva criança. Um veículo que, de madrugada, passava na rua e raptava as crianças que desapareciam para sempre. A lenda tornou-se crença.
Obviamente, a história fantasiosa e seu contador frustrado ganharam fama no bairro. E assim, ele encontrava para si enfim alguma utilidade. Espalhar crenças para incautos.
No domingo passado, 16 de janeiro, a Folha de S. Paulo publicou um artigo onde um acadêmico que nas últimas décadas último perdeu relevância .defende a lenda do racismo reverso de negros contra brancos. Uma publicação essencialmente anti-identitária.
Obviamente, a história fantasiosa e seu contador frustrado ganharam fama no bairro.
Os fenômenos do identitarismo e do anticolonialismo são as boas novas deste século 21. Mas custamos a entender que as reações a esses fenômenos não ficarão apenas nos mimimis dos intelectuais frustrados por conta dos novos tempos terem revelado sua anemia acadêmica.
A reação ao identitarismo é tão antiga quanto o colonialismo. E vai do macro ao micro. Do estrutural ao cotidiano. No século 16, forçar nativos brasileiros a falarem a língua do invasor foi uma ação anti-identitária. Séculos depois, queimar vivo o índio Galdino enquanto ele dormia em um ponto de ônibus na cidade de Brasília, também.
Na mesma semana em que a Folha publicou o texto anti-identitário que ficou famoso no bairro, um homem da mesma geração do autor do texto, matou, no município de São Gonçalo – RJ, a ex-esposa a marretadas na frente da filha de 12 anos porque sua crença era de que esposas pertencem a maridos.
Uma semana antes, a podcaster brasileira que nas redes sociais ofereceu vaga para mulheres negras foi atacada nas redes por brasileiros que a chamaram de nazista da África.
Desde que Edward Enniful foi empossado editor-chefe da Vogue Britânica, Adriana Ferreira Silva redatora-chefe da Marie Claire Brasil e Samantha Almeida diretora de criação de conteúdo dos Estúdios Globo, nunca mais ali deu-se espaço para histórias como Kombis que sequestram crianças. Você já adivinhou a cor destes chefes que parecem melhor entender o mundo hoje do que os anti-identitaristas.
Estes chefes que não relutaram em assumir a liderança, mesmo sabendo que dentro mesmo das instituições encontrariam resistência, reações, seja a marretadas corporativas, ou fogo em caso de um cochilo na gerência, xingando muito Twitter, ou passando a vida encostado em balcão de bar, colocando a culpa de sua irrelevância nos outros, e inventando lendas e crenças que ainda dão a ela alguma utilidade e fama.
Na Nilópolis de minha adolescência, ao lado do bar havia uma banca de jornal. Nela, a vizinhança consumia jornais de papel. Lia-se neles coisas como: “Sobre a pedofilia. Muitos meninos gostam e seriam frustrados se algum adulto não se aproveitasse deles”, publicou-se na Folha de São Paulo, no dia 7 de janeiro de 1991).
Eram as palavras de Paulo Francis, o maior influencer do jornalismo intelecutal brasileiro por décadas. Ganhava muito bem, desfrutava de admiração e respeito. Escrevia esse, e um sem número de aberrações, impunemente.
Francis, um crítico do politicamente correto e da cultura do cancelamento (obviamente era na época outro nome que se dava à críticas feitas aos privilegiados) já se foi. Mas seu tempo sobrevive, ainda que débil, derretendo-se, agonizando em artigos como o publicado pela Folha, que já não passam mais batidos em 2022.
Abaixo assinados de organizações tanto de gente preta como de judeus, como o grupo Judeus Pela Democracia, comunidade de 11 mil pessoas no Facebook, foram enviados à Folha, em desagravo à publicação irresponsável do texto de Antônio Risério. Essa indignação dos responsáveis nunca teria acontecido nos tempos de Paulo Francis. O mundo melhora.
Em Nilópolis, não existe mais a banca de jornal ao lado do bar. Por todo o Brasil, agora, a venda de jornais se concentra nas áreas ricas das cidades onde a lua brilha sobre uma terra plana, e os ricos têm suas crenças alimentadas pelo que lêem; conteúdos publicados com o propósito de os evitar fazerem entender em que ano estão, que relevância econômica, não é relevância cultural e que há um mundo aqui fora se transformando, melhorando, e que para isso não há mais volta.
