Castor de Andrade

De O GLOBO

Por JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

Tenho visto o seriado “Doutor Castor” e a cada vez que o bicheiro bota um maço de dinheiro no bolso de algum jogador do Bangu, “toma lá o bicho, meu filho”, vibra na memória a lembrança de um outro bicheiro que me povoou a infância.

Não sei exatamente como o sujeito se chamava, acho que José alguma coisa de sonoridade italiana. Não importa. O apelido ainda me é claro e seu anúncio ressoava pelo subúrbio da mesma maneira eloquente que hoje a presença de um milionário digital deve sacudir de euforia a bolsa de Nova York. O bicheiro Piruinha foi o Musk da minha infância.

O subúrbio era uma versão carioca da Macondo de Gabriel Garcia Márquez, um punhado de bairros sob a cultura das espinhelas caídas, feras da Penha e mortes por vento encanado. Um galho de arruda na orelha e lá se iam porta afora, ardendo de febre, os invejosos.

Em meio a esse cotidiano de assombros, com meninos pulando carniça e estocando pirilampo na caixa de fósforo, a cena do bicheiro Piruinha quando se aproximava o carnaval era de absoluta fantasia. Garcia Márquez, que dizia inventar pouco e reproduzir muito o realismo mágico do interior da Colômbia, teria feito obra ainda mais genial se nascesse na Vila da Penha.

Na semana anterior à grande festa carioca, Piruinha passava pelas ruas do bairro num Cadillac conversível e, evoé, Momo!, atirava para o ar notas de um cruzeiro. Era a de menor valor na época, ilustrada pela foto do almirante Tamandaré numa expressão de vovô careca abilolado. Ninguém reclamava daquela prévia do auxílio emergencial.

Dependendo da quantidade de “tamandarés” que se pegasse, dava para levantar a roupa dos quatro dias de carnaval. Eu me lembro bem disso tudo – e não só por já fortificar a memória com Biotônico Fontoura e óleo de fígado de bacalhau Scott, mas porque eu era um dos moleques correndo atrás do dinheiro do Piruinha. Naquele ano, saí de Falcão Negro.

Esse subúrbio existiu, foi cantado por Chico, Garoto e Vinicius naquela valsa da gente humilde nas calçadas e na fachada escrito que é um lar. Castor de Andrade era um Piruinha formado em Direito. Preferia distribuir dinheiro para passistas de escola de samba e jogadores de futebol. De resto, ambas benemerências eram falsas. Serviam para esconder assassinatos do jogo do bicho.

“Doutor Castor” é um documentário sobre a perda da inocência do carioca, a decadência de uma cidade onde hoje todos parecem suspeitos de algum malfeito. O “gente boa” já era. No primeiro capítulo o bicheiro é um rei divertido, no último, um criminoso. Tem sido assim com os prefeitos, os governadores. Uma série imperdível. A heroína aparece no final. É a juíza Denise Frossard, que – desculpe o spoiler – prende Castor e toda a quadrilha. Ela merece uma série exclusiva, mas isso já é outra história. Ou outro bicho.

PS: Um dia, num julgamento, Denise Frossard viu o réu desafiar a lei mais uma vez. O sujeito abriu a braguilha e depositou o que tirou de lá sobre a mesa do egrégio tribunal. Denise, dona de excelente humor, estava narrando detalhes do processo para a taquígrafa. Sem perder o controle da situação, a juíza continuou a ditar: “…e que então, nesse momento, o réu pôs sobre a mesa o seu pênis diminuto …”.

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