Da FOLHA

Por DRAUZIO VARELLA

Acreditar que ter mais médicos melhora o atendimento é um engano

Abrir faculdades de medicina como temos feito é um absurdo que vai nos custar caro.

Temos 389 faculdades —por enquanto—, número que nos confere o título de vice-campeões mundiais. Ganhamos dos Estados Unidos, que têm 131, e da China, com 150 para 1,4 bilhão de habitantes. Só perdemos para a Índia, o país mais populoso do mundo, mesmo assim por pouco tempo, mantida a irresponsabilidade atual.

Os dados da Demografia Médica 2024, recém-publicados pelo Conselho Federal de Medicina, revelam que nos últimos dez anos autorizamos o funcionamento de 190 faculdades, mais do que em toda a história da medicina brasileira.

Por que tanto interesse em abrir escolas médicas? Com mensalidades que podem passar de R$ 10 mil, não vamos perder tempo com explicações.

Há 576 mil médicos no Brasil, quatro vezes mais do que aqueles em atividade nos anos 1990, quando éramos 144 milhões, 70% da população atual.

Você, prezado leitor, pode pensar que num país com tantas deficiências no acesso à saúde, quanto mais médicos tivermos, melhor o atendimento.

Está enganado. Primeiro: essas faculdades são criadas em instalações inadequadas para os laboratórios do curso básico e sem dispor de hospitais-escola dignos desse nome.

Segundo: não existem no país professores com formação acadêmica em número suficiente para oferecer cursos com um mínimo de qualidade para tantos alunos.

Terceiro: não temos vagas para residentes nem para a metade dos formandos. Como os concursos para residência aprovam os mais preparados, caímos numa situação paradoxal: os mais preparados passam mais cinco anos em treinamento nos melhores hospitais, enquanto os demais são jogados no mercado de trabalho sem avaliação técnica.

Os advogados enfrentaram esse problema estabelecendo a obrigatoriedade do exame da Ordem dos Advogados do Brasil, exigência necessária para exercer a profissão. Na medicina, forças ocultas impedem que o mesmo seja feito. A justificativa no nosso caso seria até mais lógica: o advogado incompetente corre risco de ser eliminado do mercado de trabalho, o médico com menos preparo é o que vai atender no interior e nas periferias das cidades. Você, caríssima leitora, se tiver a infelicidade de sofrer um acidente numa estrada, terá chance de selecionar o médico que vai atendê-la?

Quarto: faculdades de má qualidade continuam abertas pelo país afora, jogando centenas, senão milhares, de jovens mal treinados para atender em ambulatórios e nos pronto-socorros. Os Estados Unidos, a certa altura, fecharam dezenas delas. Um exame de suficiência a cada dois anos teria a vantagem de avaliar a qualidade do ensino, dar oportunidade para aprimorá-lo e proibir novos vestibulares nas escolas com os piores resultados.

Quinto: os custos da assistência médica aumentam muito quando o médico não sabe como resolver os casos dos pacientes que atende. Na indecisão, a oportunidade do diagnóstico precoce é perdida, a doença progride, o tratamento fica mais difícil, os exames mais frequentes e os procedimentos técnicos mais complexos e dispendiosos.

E, pior, o desperdício aumenta. Talvez na esperança de que os exames laboratoriais e as imagens lhes indiquem o caminho que desconhecem, maus profissionais pedem quantidades injustificáveis de exames, abusos que nós, médicos, cansamos de testemunhar.

Esses exageros deram origem à “cultura dos exames”, segundo a qual as pessoas acreditam que quanto mais exames fizerem, melhor o atendimento. Quantas vezes, leitor, ouviu de um amigo sedentário que fuma, bebe além do razoável, come tudo o que lhe oferecem e pesa 20 quilos a mais, dizer “fiz todos exames, estou ótimo”.

Sexto: deixo para o fim o mais importante. Maus médicos são um perigo para seus pacientes. Não seria este o argumento definitivo para submetermos à seleção essa enxurrada de profissionais mal formados e de faculdades de medicina precárias que os interesses financeiros insistem em multiplicar?

Não precisamos de mais médicos para concentrá-los nos grandes centros, mas para distribuí-los pelo país, nas localidades que necessitam deles.

Faz sentido mais da metade dos médicos brasileiros ficarem concentrados no Sudeste ou que na cidade de Vitória, no Espírito Santo, existam 18,6 para cada mil habitantes, enquanto no Amazonas sejam 0,2 por mil amazonenses?

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