Da FOLHA

Por CONRADO HÜBNER MENDES

Liberdade, soberania e segurança nunca significaram delinquência, exceto na boca do delinquente

Um dia talvez acordemos do transe coletivo e recuperemos alguma capacidade de produzir e comunicar verdade e ciência com autoridade. E organizemos nossas divergências a partir dessa terra redonda compartilhada. Nesse dia lembraremos que liberdade, soberania e segurança nunca significaram delinquência. Exceto na boca do próprio delinquente, a serviço de suas pulsões.

Quando Bolsonaro discursa pela liberdade, soberania e segurança, não está prestando homenagem a filosofias liberais ou comunitaristas, a constituições republicanas e democráticas, a qualquer signo de progresso moral e político, a qualquer evidência empírica. Muito menos, cidadão eleitor, à sua dignidade e inteligência.

As origens ideológicas estão em colônias escravistas. Sua apropriação retórica, em autocracias militarizadas do último século. A formulação verbal se gesta no fígado e aciona emoções primárias. O lucro real se dá no bolso de oligarcas. Os efeitos se contam em vidas.

No Brasil bolsonarista, o esquema funciona assim.

A “liberdade” você entrega para o jagunço, o capitão do mato e o bolsonarista da esquina, educado e teleguiado pelo gabinete do ódio. Entrega também para o empreendedor que não produz riqueza senão com a dilapidação dos recursos naturais mais valiosos do século 21.

O tino para negócios predatórios desse empreendedor gera “externalidades negativas” pagas pelo seu bolso, sua saúde ou sua vida. E da sua família. Comunismo reverso transgeracional.

A “segurança” você dá a homem de bem armado, a miliciano e a policial com licença para matar. Só invocar “bala perdida”, código para esvaziar, contra a lei, responsabilidade do homicida sem rosto. A bala perdida, apesar de perdida, prefere a pele preta. Inclusive chega na sua filha, no seu filho. Memorial de mortos em chacina policial você destrói. Pode dizer que fazia apologia ao tráfico.

A “soberania nacional” você divide entre garimpeiro, grileiro, traficante de madeira e crime organizado amazônico. Eles que se matem. Se levarem juntos os indígenas e outros povos da floresta, efeito colateral da liberdade. A parte polpuda dessa soberania privada vai para o oligarca internacional do ouro, do lítio, do cobre, do mogno. E vale salpicar alguns milicos pela floresta para que continuem a não fazer o que dizem e a fazer o que não dizem.

Aproveita e libera a educação integral da criança brasileira para pais e pastores. Deixa nada para a escola. O ambiente de imersão domiciliar, sabe-se, garante a subnutrição intelectual e socioafetiva. E facilita abuso sexual. Diga que o estado vai supervisionar por meio de provinhas semestrais e de um exército de assistentes sociais que fiscalizará esse sistema educacional sem educadores. Em cada casa uma unidade de ensino.

O poder de privar a criança da condição de sujeito de direitos e torná-la objeto de experimento familiar e religioso é usina de damarinhas e damarinhos. Pais livres, seguros e soberanos para impedir a construção de autonomia dos filhos aceleram o colapso educacional do país. E econômico. Efeito colateral do contrato.

O projeto cancela, sem revogar, a constituição e seus pressupostos. Dispensa estado e instituições. Não há contrato social nem sociedade civil, apenas um agrupamento humano em luta por sobrevivência. Pede apenas homem de bem armado e virilizado para jamais ser escravizado.

Quem morrer, morreu. Que carregue o mérito de sua morte pela bala perdida do frio, da fome, da pobreza, da discriminação, do vírus. O presidente, o prefeito, o parlamentar, a polícia não respondem por isso.

O denominador comum desse esquema é o apagamento, veja só, do comum. Dos bens materiais e imateriais e dos recursos naturais que não deveriam ser apropriáveis por quem paga mais, porque deles depende a comunidade política.

Essencial ao sujeito livre, seguro e soberano bolsonarista, além da violência bruta, a jequice colonial. Dias atrás, o ministro Fábio Faria dirigiu-se a Elon Musk, talvez o empresário mais livre, seguro e soberano do mundo, e revelou que “everybody in Brazil loves you”. Concedeu a ele medalha por serviços nunca prestados ao país. Faltou apenas a medalha do decoro judicial para Dias Toffoli, juiz livre, seguro e soberano na plateia de tietes.

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