De O GLOBO

Por RUTH DE AQUINO

CHOSE DE LOC

Uma amiga que mora em Londres com o marido e as filhas me mandou uma mensagem. “O Brasil está te desanimando muito, Ruth? Quero voltar e estou preocupada”. Ela é escritora, faz mestrado, com bolsa, numa universidade com a tradição do passado e a tecnologia do futuro. Respondi: “Espera as eleições para decidir, tudo pode acontecer”. Um golpe? Tumultos? Uma ditadura militar? A reeleição de Bolsonaro e a transformação do Brasil numa teocracia populista e armada em surto permanente? Espera o fim de outubro.

Todo mundo acima de 50 anos se lembra de Sebastião, personagem de Jô Soares de 1982, “o último exilado, codinome Pierre”. Era louco para voltar ao Brasil, detestava o frio europeu, mas desanimava ao ouvir de Madalena, sua mulher, as notícias políticas e econômicas. Ele reagia exasperado: “Você não quer que eu volte!” Assim está minha amiga. Lembrando o Sebá de Jô Soares em Paris. Chose de loc. Pedi a ela que listasse seus maiores medos.

“O medo número 1 é a reeleição de Bolsonaro e o desmonte de nossa ainda jovem democracia. A desvalorização do outro, da educação e da cultura. O culto às armas, isso nos assusta. É nosso maior temor. A ampliação da ignorância, a nostalgia por um país intolerante. Também tem o medo econômico, da nossa recolocação depois dos 50 num país que cultua a juventude e despreza a experiência. E as dúvidas sobre a educação das filhas e como bancar a saúde para a família. Não somos ricos”.

Por que ela quer voltar? Pela mesma razão que eu quis voltar todas as cinco vezes em que morei na Europa. A identidade, as raízes, os pais idosos, irmãos, a rede de amigos, o reconhecimento profissional em nossa terra, o amor que supera o medo. Estar fora não faz o Brasil sair da gente. Não queremos virar imigrantes. Mas outros quatro anos de Bolsonaro significam bye-bye Brasil. O país afundará.

A angústia é tamanha que a psicanalista Beth Salgado, que trabalhou 20 anos na Fiocruz, atende do Rio, por chamada de vídeo, cada vez mais brasileiros no exterior, saudosos e divididos. Beth é uma das autoras do livro recém-lançado “Cuidados compartilhados na pandemia”, sobre ansiedade e saúde mental.

“A volta envolve questões psíquicas e afetivas. ‘Deixei meus familiares. Meu pai faleceu e eu estava fora. Minha mãe idosa precisa de mim’…Meus pacientes sofrem e eu sofro com eles. Analisamos prós e contras. Estão todos muito assustados com a violência urbana no Rio e em São Paulo. Tudo piorou muito. Quem não tem medo da atual realidade tem um pezinho na psicose. Seria a negação total do perigo. E o outro medo visível e concreto é que a democracia esteja em risco”.

Muitos de nós não percebemos como o medo excessivo nos torna seres humanos traumatizados, piores, adoecidos. Quando não somos assaltados com todos os nossos dados no celular, ou atropelados, sequestrados, somos abordados por um Brasil que se decompõe. Pessoas na miséria ou drogadas, enroladas em cobertores, feridas, nos pedem remédio, fralda, comida pelo amor de Deus. A cada dois passos, histórias de desespero. Uma menininha de oito anos na praia, bem vestida, com dreads nos cabelos, veio me vender amendoim com o discurso: “Isso não é um assalto”. Isso é o fim dos tempos.

O Brasil anda tão mal das pernas que vira grande notícia a opinião da indicada à Embaixada dos EUA de que teremos “eleições livres apesar de Bolsonaro”. Tomara que os brasileiros sejam sábios como os americanos, que se livraram do Trump. Então, amiga de Londres, espere as eleições. Se não decidirmos no primeiro turno, então no segundo. Volte ao Brasil sim, mas só se Bolsonaro perder. Volte enrolada na bandeira. Em 2022, esperar é saber. Há esperança.

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