Da FOLHA

Por MARILENE FELINTO

Enquanto minha mãe se põe a morrer, encolhida e ainda crente, minha raiva de pastores falsários se avoluma

Eis que a farsa já pode receber o nome de fraude, de banditismo. Banditismo evangélico. Eis que escrevo aqui cheia de raiva desses evangélicos —é que minha mãe, à espera da morte neste exato momento, na inconsciência ou semiconsciência, em um leito de hospital, está muito provavelmente tentando se comunicar com o Deus dela, o Deus do embuste cristão-evangélico.

Até mesmo ela, criada nos bancos duros da Assembleia de Deus desde criança, até ela reconhecia há tempos que a promessa evangélica de paraíso carrega uma nódoa de falsidade, indecência, exploração e trapaça —desiludida com a Assembleia, mudou-se para a Metodista e depois para a Batista. Passou a criticar todas elas. Recolheu-se na sua própria fé octogenária, na sua própria Bíblia, na sua própria harpa de hinos, enfurnada em casa durante a pandemia.

Eis que, enquanto ela aguarda senão pelo Deus que a leve embora desse mundo que já lhe era insuportável, enquanto repousa num leito fatal e frio, eis que minha raiva se avoluma, num velório que não contará com nenhum desses falsários pastores evangélicos. Penso em proibir a presença deles, pois se até minha mãe já percebia a aberração em que se transformou o ethos das igrejas evangélicas no Brasil.

Agora mesmo essas igrejas, que já vinham tão desmoralizadas pela prática de coerção de seus fiéis por dinheiro (antigamente chamado dízimo), em troca da falsa promessa de felicidade em outro mundo, essas igrejas amargariam a derrocada final se o país tivesse governo, regramento e Justiça decente.

Que nada. O banditismo grassa de norte a sul, faz negócios no balcão da promiscuidade entre política e religião evangélica. A recente revelação de que o demitido ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, fazia tráfico de influência com recursos públicos da pasta já não seria o bastante para indiciá-lo por crime? Indiciar a ele e a seu superior imediato, o fascista Jair Bolsonaro.

O tráfico, segundo o tal pastor, atendia a solicitação direta de Bolsonaro. “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim”, disse Ribeiro sobre a prática espúria.

O tráfico consistia em intermediar, na base da propina em dinheiro ou barras de outro, liberação de verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) para municípios por meio de representantes evangélicos, numa rede de negociatas liderada por dois pastores da Assembleia de Deus, Gilmar Santos e Arilton Moura.

Crime de tráfico de influência está no Código Penal, no artigo 332: “Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função”.

Sobre a pena que pune esse crime, o mesmo artigo diz: “Reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário”.

O banditismo evangélico vai corroendo na surdina as instituições republicanas, cagando em cima de uma Constituição supostamente laica. Ora, o ethos político e o ethos moral são diferentes, ressaltam os estudiosos do tema, “e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder”. Mascarados, criminosos, bandidos. Pois esses moralistas, esses fascistas vestidos de pastores serão vetados!

Enquanto minha mãe se põe a morrer, toda pequena, encolhida e ainda crente, lá no seu leito final, minha raiva se avoluma como uma onda —consigo inclusive ouvir o mar se derramando na praia de Boa Viagem, Recife, eu sentada ao lado dela no culto enfadonho da Assembleia de Deus do bairro. Por vezes os pastores gritavam alucinados lá no púlpito, incorporando algum espírito ou bebendo o sangue de Cristo, diziam, assustando as criancinhas como eu. Um inferno. Falsários, criminosos.

Mas minha mãe cantava lindamente, à capela, muito afinada, entre as pregações e orações da liturgia aterradora. Eu admirava aquela mulher que sabia de cor os hinos, única hora em que a p*a do culto valia a pena, em que o sofrimento dela parecia se dissipar.

Tentou de tudo para que os filhos se convertessem ao credo dela. Não conseguiu. Mas não lamentava —sabia, decepcionada, da fraude, do crime. Espero que ela suba aos céus dela cantando um hino.

Não oro, não rezo, não acredito em nada. Deus para mim tem outro nome: “Propofol”, alívio, esquecimento, anestesia contra a dor desse mundo brutal. Hoje derramam-se por aqui apenas essas lágrimas do mar triste do meu coração, do mesmo sal da antiquíssima Boa Viagem.

Perder mãe é ver perder-se um pouco de todo o resto. Naquela infância evangélica, ao menos um pai ateu nos esperava em casa, fazia o contraponto. Amém.

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