Da FOLHA

Por CONRADO HÜBNER MENDES

Partidos não querem, STF não deixa

Augusto Aras não conseguiria promover a blindagem nuclear de Jair Bolsonaro se outros não lhe oferecessem, em contrapartida, blindagem holística à sua omissão. As críticas contra o procurador-geral da República, que transformou sua repartição num armazém de secos e molhados que faz fiado, devem ter clareza de quem facilita o descalabro.

Só nesses dias, Aras somou quatro novos exemplos a sua série histórica do servilismo. Primeiro, pediu arquivamento de investigação contra Bolsonaro por vazamento de informações sigilosas do TSE. Logo Aras, que confere sigilo a tanto do que faz, tira da cartola o princípio da publicidade.

Segundo, na tentativa de explicar quatro meses sem providência relevante, desqualificou CPI e criticou senadores por entregar provas bagunçadas. Ganhei uma aposta aqui.

Terceiro, solicitou investigação contra senadores que teriam usado dados da CPI que ele, Aras, pôs em sigilo. Quarto, anunciou que retirará o tal sigilo que solicitou a documentos da CPI submetidos ao STF. Se havia antes motivos para sigilo, que fato novo justifica a mudança? O motivo parece estar fora do direito. Não contém ironia, só parece.

Aras construiu a zona franca da legalidade onde mora o presidente. Fundamentos jurídicos artificiais, verbalizados num javanês de baixa densidade argumentativa, vão deixando o terreno dinamitado por Bolsonaro sem consequências jurídicas. Isso foi possível porque a dupla explorou, nas brechas da Constituição, a arquitetura da omissão (explicada em outra coluna).

Tudo isso já se sabe. Mas vale olhar com mais atenção para os blindadores do blindador geral (os “gatekeepers do gatekeeper”). Quem são? O que fazem?

O Senado continua grande parceiro. Reconduziu Aras a novo mandato sob a alegação de que, apesar do que não fez no primeiro, faria diferente no segundo. Tem poder de julgar crime de responsabilidade do PGR. Mas Rodrigo Pacheco, seu presidente, já se antecipou: “Externo a confiança no bom trabalho da PGR.”

Partidos políticos, exceto por manifestações individuais esparsas, seguem em silêncio e não se mobilizam em iniciativas políticas ou jurídicas. Priorizam cálculo eleitoral suicida, não o cálculo de mortes, crimes e erosão institucional.

A advocacia antilavajatista por autodeclaração, que festejava Aras, emudeceu. Se metade da energia corretamente gasta contra o lavajatismo de Moro fosse investida no combate ao maestro do lavajatismo invertido, haveria coerência. Moro e Aras descendem do mesmo caldo.

O STF dá enorme contribuição. Numa instituição despedaçada pelo poder monocrático distribuído a ministros, importa lembrar quem colabora com Aras. Até aqui, sobretudo Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Ambos bloqueiam a possibilidade de que o CSMPF (Conselho Superior do Ministério Público) analise representações criminais contra Aras.

Já se vão quatro tentativas. Primeiro, representação feita por ex-procuradores-gerais ao CSMPF, obstruída pelo vice de Aras. A obstrução e arquivamento foram confirmados por Toffoli.

Segundo, Moraes arquivou representação pelos senadores Alessandro Vieira e Fabiano Contarato, enviada diretamente ao STF pedindo envio da investigação criminal ao CSMPF (já que a iniciativa anterior foi lá bloqueada).

A terceira, do mesmo tipo, apresentada pela Comissão Arns, segue parada no gabinete de Alexandre de Moraes, onde acaba de chegar uma quarta, de autoria do senador Randolfe Rodrigues. A doutrina de que o STF não pode controlar violação de direitos no procedimento do CSMPF não só destoa da Constituição como é incoerente com outras posições do STF.

Por fim, acaba de sair decisão monocrática de Toffoli, em ação curiosamente proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público logo que Aras começou a ser acusado de prevaricação (ADPF 881). A ação tem cara, cheiro e feição de habeas corpus em favor de Aras. Mas veio com a roupa impessoal de ADPF. Toffoli, lembre-se, organizou livro em homenagem a Aras que reuniu textos de outros ministros do STF e advogados.

Na liminar, Toffoli sustenta que juízes e promotores não cometem crime de prevaricação. O artigo do Código Penal não seria aplicável em virtude de sua “liberdade de convencimento” e “autonomia”. Não pergunte quais os desdobramentos lógicos dessa posição.

Nota da Revista Veja, escrita por repórter ex-assessor de comunicação de Aras, logo concluiu, em tom categórico, que a decisão “livra” Aras e “afasta a possibilidade” da ação na mesa de Moraes prosperar. Mas cabe a Moraes decidir se há outra interpretação possível da liminar de Toffoli.

A omissão de Aras deixou a Constituição sem uma perna. E dessa ausência nasceram extravagâncias institucionais que tentam remediá-la: inquéritos abertos pelo próprio STF; observatório da CPI, composto por senadores, para pressionar PGR; ideia de ação penal privada, pela sociedade civil, se Aras se omitir. Uma indústria de disfuncionalidades em cadeia.

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