Da FOLHA

Por NABIL BONDUKI

Rochas caindo sobre turistas e terra destruindo obra de arquitetura colonial são pequenos exemplos de desastre anunciado

Imagens valem por mil palavras.

Os vídeos que mostraram o desmoronamento de uma rocha sobre barcos no lago de Furnas, em Capitólio (MG), e o soterramento de um casarão tombado em Ouro Preto (MG) foram tão chocantes e didáticos que talvez possam ter despertado a consciência em muitos que acham que os eventos extremos só vão acontecer em um futuro distante.

Essas imagens me fizeram lembrar do título que dei à coluna que escrevi sobre o filme “Não olhe para cima”: “Planeta não será destruído rápido, como no filme com Leonardo DiCaprio, mas aos poucos”.

Rochas caindo inesperadamente sobre turistas e terra despencando de um morro para destruir uma bela obra de arquitetura colonial são pequenos exemplos midiáticos de um desastre anunciado. Pedaços do planeta vão sendo destruídos aos poucos, mas com uma rapidez e intensidade impressionante, pipocando em diferentes lugares ao mesmo tempo.

Na Bahia, cidades inteiras e milhares de edificações ficaram debaixo d’água em decorrência de inéditas enchentes do final do ano (que não é período de chuva na Bahia), deixando cerca de 130 cidades em estado de emergência, 26 mortos e cerca de 100 mil desabrigados.

Em Minas Gerais, no início do ano, ocorreu o mesmo em 370 municípios (44% do estado). Vinte e cinco pessoas morreram e 52 mil ficaram desabrigadas ou desalojados pelas enchentes ou risco de rompimento de barragens. No norte do estado do Rio de Janeiro, outras 25 mil pessoas tiveram o mesmo azar. Milhares de famílias perderam tudo o que tinham.

É claro que a destruição de um casarão da elite, patrimônio nacional, filmada ao vivo, ganha maior repercussão, mas dezenas de cenas semelhantes ocorreram nas cidades atingidas pelas tempestades, com casinhas precárias e gente pobre sendo soterradas e carros sendo arrastados pela correnteza.

Enquanto a faixa entre Bahia e Minas ficou debaixo d’água, a Argentina e o Sul do Brasil sofrem com uma forte onda de calor e seca. A Argentina viveu a semana mais quente desde que se começou a fazer registros, em 1906. O calor veio acompanhado de incêndios, apagões e falta de água.

Em meio às altas temperaturas, um apagão atingiu o norte de Buenos Aires, após picos de demanda devido ao funcionamento simultâneo de grande quantidade de aparelhos de ar condicionado. O apagão foi causado por um incêndio nos geradores de uma central elétrica.

Em Córdoba, ocorreram grandes incêndios e as autoridades esvaziaram a localidade turística de San Marcos Sierras, onde os bombeiros tiveram dificuldades para controlar o fogo. Em Arroyito, na província de Córdoba, o asfalto de uma rua foi destruído pelo calor.

Em Mar del Plata, na costa argentina, 27 focos de incêndio ocasionaram internações de pacientes com problemas respiratórios por conta da ingestão de fumaça. Foram registrados pontos de incêndio nas regiões de Bariloche, Entre Ríos e Corrientes.

Em Buenos Aires, as temperaturas máximas alcançaram 46°C. Além dos cortes de energia, faltou água e a fumaça dos incêndios atrapalhou a visibilidade no Aeroparque, causando atrasos em pousos e decolagens.

Essas ondas de calor e secas, cada vez mais fortes e recorrentes, são provocadas pela emergência climática e pelo avanço da fronteira agrícola sobre a área verde, que se acelerou nas últimas décadas, por conta da alta de preços da soja no mercado internacional. Tudo muito parecido com o que ocorre no Brasil.

A desertificação do solo avança enquanto o desmatamento é intenso na província de Córdoba (só sobrou 3% da cobertura verde original), no Chaco (norte) e na Patagônia (sul), provocado para ampliação da criação de ovelhas e da produção agrícola.

Como a soja emprega poucos trabalhadores, milhares de pessoas são obrigadas a migrar para as áreas pobres das grandes cidades. “Isso não é sustentável. É necessário manter a diversidade das produções locais, a dinâmica da economia das pequenas e médias cidades”, afirma Enrique Viale, da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas.

Está claro que sem alterar o atual modelo de desenvolvimento econômico, particularmente os relacionados com o agronegócio e a mineração, onde o lucro imediato está em primeiro lugar, assim como o padrão insustentável de ocupação do solo urbano, eventos e tragédias como estão ocorrendo no Brasil e na Argentina serão cada vez mais frequentes.

A mineração transformou Minas Gerais em uma bomba relógio, com 400 barragens de rejeitos, como as que provocaram tragédias em Mariana e Brumadinho, espalhadas por todo o estado.

Nessa semana, 31 barragens apresentavam algum nível de emergência, sendo seis em nível 2 (onde é recomendada a retirada nos moradores) e três em nível 3 (risco iminente de rompimento e onde os moradores são obrigados a deixar suas casas). Em Nova Lima, a barragem da Mina de Pau Branco transbordou.

Ao invés de se alterar esse modelo de exploração predatória do subsolo, ele vem se aprofundando, com o apoio do governo. O presidente Bolsonaro assinou um decreto autorizando empreendimentos considerados de utilidade pública, inclusive mineração, em áreas de cavernas.

O dispositivo permite a destruição até de cavidades naturais classificadas pelos órgãos ambientais como de relevância máxima, ou seja, de grande importância para a história da humanidade e para a diversidade da vida.

Enfrentar os eventos extremos requer ações estruturais e de prevenção, que precisam ser prioridades.

Um dos principais desafios dos candidatos nas eleições presidenciais será formular uma proposta de desenvolvimento econômico e urbano sustentável que gere riqueza e trabalho e, simultaneamente, proteja o meio ambiente e reduza as emissões, para mitigar a emergência climática. Sem mudanças estruturais, continuaremos a assistir a tragédias anunciadas.

Como a alteração desse modelo requer tempo e vontade política, será necessário implementar ações governamentais preventivas para tornar as cidades, onde os eventos extremos causam mais prejuízos e mortes, resilientes e seguras, conforme o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 11.

Em 2011, após a tragédia na região Serrana (RJ), o governo Dilma criou o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Centro Nacional de Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, que emite alertas sobre inundações e deslizamentos, fornecendo informações que permite se antecipar aos desastres, instrumento fundamental.

Mas as cidades precisam se preparar, ampliando a permeabilidade do solo, preservando as Áreas de Proteção Permanente na beira dos cursos d’água, produzindo moradias para as famílias de baixa renda e elaborando o Plano de Redução de Risco.

São Paulo, que nesse ano tem sido poupada tanto das enchentes como das ondas de calor, está despreparada. O Plano Diretor determinou que fosse elaborado o Plano Municipal de Redução de Riscos, mas até agora a prefeitura não o formulou, apesar de estar sendo questionada há anos pelo Ministério Público. Não dá para contar com a ajuda divina.

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