Da FOLHA

Por SILVIO ALMEIDA

Plebiscito neste momento serviria apenas para arrancar de modo definitivo a soberania do povo

Constituições têm origem em conflitos políticos que não poucas vezes resultam em sangue e vidas ceifadas. É a consequência jurídica de um processo político. Em linhas gerais, uma constituição insere, se não um ponto final, ao menos uma vírgula em disputas de poder marcadas por conflitos civis, golpes de Estado e revoluções.

Portanto, nasce para inaugurar uma ordem social projetada a partir das aspirações políticas dos vencedores na luta pela soberania. Foi assim, por exemplo, na Revolução Americana de 1776 e a Constituição de 1787, na Revolução Francesa de 1789 e a Constituição de 1791 e na Revolução Russa de 1917 e a Constituição de 1918.

O problema da dupla origem das constituições —política e jurídica— ou, em outros termos, do poder constituinte originário, voltou a ser objeto de debates devido às notícias de que o Chile decidiu pela criação de uma nova Constituição. Desde 2019, a sociedade chilena é palco de intensas manifestações contra a política econômica neoliberal, herdada do governo golpista de Augusto Pinochet. A mobilização social e a pressão popular forçaram a realização de plebiscito, no qual o povo chileno retomou o poder constituinte, subtraído pelo golpe militar de 1973, e decidiu pela criação de uma nova Constituição, substituta da carta pinochetista.

De olho nos acontecimentos do Chile, alguns políticos brasileiros viram uma oportunidade única de se livrarem de algo que incomoda certos setores do capital: a Constituição de 1988. Para esses, trata-se de uma Constituição que “não cabe no orçamento” e “contém direitos em excesso e deveres minguados”. Por esses motivos é que propõem uma nova Constituição para o Brasil. Tudo balela. O que almejam é que essa nova Constituição permita, sem os atuais constrangimentos jurídicos da Constituição vigente, destruir o sistema de proteção social, arrebentar com as normas de preservação ambiental, vender o patrimônio nacional, permitir que o setor privado capture o orçamento público e violar direitos humanos (afinal, é preciso conter quem, porventura, reclamar do desmonte). E não podemos esquecer que a atual Constituição do Chile resulta de uma ditadura, já a brasileira é produto do retorno à democracia.

A desculpa dada é a de que a Constituição brasileira precisa ser “modernizada”. Em primeiro lugar, é importante esclarecer que constituições podem ser reformadas durante a sua vigência, sem que novas sejam criadas. A Assembleia Nacional Constituinte de 1987 concedeu permissão ao Congresso Nacional para modificar a Constituição, com exceção de alguns pontos denominados “cláusulas pétreas”, previstas no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal, que garantem a forma federativa de Estado, a separação de Poderes, o voto direto, secreto, universal e periódico e os direitos e garantias individuais.

Em 32 anos de vigência, a Constituição Federal de 1988 foi emendada, até agora, 108 vezes, sendo a última alteração do dia 27 de agosto de 2020. Portanto, a proposta de nova Constituição é oportunista e tem como objetivo avançar sobre temas que o poder constituinte originário não permite deliberações. É um plano que serve somente para, como ensinam Gilberto Bercovici e Luis Fernando Massonetto, “inverter a Constituição”, fazendo com que o direito econômico se submeta ao direito financeiro, que o meio tome o lugar da finalidade.

Em suma, o objetivo é dar verniz jurídico à violência do receituário neoliberal, algo que os brasileiros já vêm engolindo a seco por meio de reformas como a trabalhista e o famigerado teto de gastos.

Não há o que justifique um plebiscito neste momento. Serviria apenas para instrumentalizar a vontade popular a fim de arrancar de modo definitivo a soberania do povo brasileiro.

É evidente que a proposta de uma nova Constituição, como disse a jornalista Flávia Oliveira, é “golpe”.
Não há outro nome para a tentativa de alterar a ordem social e econômica passando por cima da soberania popular e, por consequência, do poder constituinte originário.

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