De O GLOBO

Por CARLOS ANDREAZZA

Ativismo Judicial

No Brasil, mesmo que neste Brasil, existe – ainda existe – o devido processo legal. Para eventualmente punir, mas para sobretudo proteger. Para proteger você, leitor. Para me proteger. Para proteger Sérgio Moro. Para proteger aqueles que amamos. Para proteger Lula e Bolsonaro. Para proteger aqueles que odiamos, leitor. Para proteger Glenn Greenwald, o jornalista.

Então, leitor, imagine que você está em sua casa, com sua família, e de repente é informado – notificado – de que foi, de que você foi, denunciado pelo Ministério Público Federal por algo como associação criminosa, e que isso ocorreu, você sabe, sem que nem sequer fosse investigado. Um bico, de partida, gravíssimo, no tal devido processo legal. Afinal, ainda estamos sob o Estado de Direito. Certo?

Atenção a isso, leitor: você foi formalmente acusado, acaba de saber, sem que houvesse um inquérito contra si; foi denunciado mesmo depois de a Polícia Federal haver dito – bem antes – que não havia motivos para o seu indiciamento. Mesmo assim, como expressão de vontade individual, como manifestação de poder, um procurador o denunciou. Logo você, leitor, façamos o exercício de nos colocar no lugar do outro, um jornalista cujo trabalho se dedicava a investigar e expor ações de um grupo de procuradores.

É impossível, leitor, que você leia isso – sendo isso o preciso relato dos fatos, mesmo sendo você um que ama Moro e despreza Glenn – e nem ao menos considere este um caminho exótico. Pois lhe digo: este é o rumo de um estado policial.

Eu lhe pergunto, leitor: quem controla – quem investiga e limita, quem pune – os agentes do Ministério Público? Respondo: hoje, ninguém. E veja: temos já uma nova – e necessária, diria urgente – lei de abuso de autoridade. O leitor se lembra da grita – amplificada pelo jornalismo de entretenimento – contra o troço? Agora, aliás, entendo; agora temos um exemplo que explica por que as partes mais influentes, lavajatistas, do Ministério Público foram tão contrárias a essa lei.

A denúncia contra Gleenwald – materialização do abuso de autoridade – é juridicamente inepta, insustentável, e configura uma explícita arbitrariedade para fins políticos. Configura – sejamos diretos – perseguição política. Revanche. Exibe, assustadoramente, uma poderosa corporação se voltando contra um trabalho legítimo que a incomoda. Consiste numa tentativa de intimidação à atividade jornalística.

Convido o leitor a examinar o texto da denúncia. Basta, porém, passar os olhos na peça para entender que o Greenwald foi denunciado com base na deliberada distorção do que fala nos diálogos que sustentam a acusação. Foi denunciado com fundamento no que o procurador julga ser a intenção do jornalista; e eu nunca vi alguém ser denunciado com lastro na interpretação individual sobre o que se imagina que o acusado pretendia fazer com suas falas. Revanche. Vingança. Estado policial.

O procurador tinha um objetivo – denunciar o jornalista, aquele que investigava procuradores – e ajustou a leitura dos áudios para que corroborasse sua meta. O procurador tinha uma meta, e assim não teve dúvida em afrontar uma liminar do ministro Gilmar Mendes, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que protegia a atividade jornalística de Greenwald da sanha do ativismo judicial. É claro que o procurador não teve receio em afrontar, a rigor, o Supremo Tribunal Federal: foi o próprio STF, por meio da forma permissiva como atua, por exemplo, Edson Fachin, espécie de ministro despachante do lavajatismo, que autorizou que procuradores se sentissem acima de nossa corte máxima. (“In Fux we trust” – não nos esqueçamos.)

As acusações – disparadas sem provas – são de que Greenwald “auxiliou, incentivou e orientou” o grupo criminoso que roubou dados sigilosos e lhe repassou. Nenhuma, claro, sustenta-se à luz da lei brasileira. Nada na conversa dá a mais mínima sustentação à tese de que o jornalista fora cúmplice no crime em que consistiu o roubo dos conteúdos sigilosos dos celulares de autoridades. Receber e divulgar jornalisticamente conteúdos obtidos criminosamente por outros – as fontes – não é crime. Receber e divulgar jornalisticamente conteúdos obtidos criminosamente por outros, as fontes, sabendo que essas fontes obtiveram os conteúdos de forma criminosa, não é crime.

Temos uma Constituição. Temos um arcabouço jurídico. Neste conjunto expresso o direito jornalístico ao sigilo de fonte. Nele expresso que um jornalista – no exercício de sua atividade – não comete crime, insisto, ao manter relações com um criminoso mesmo sabendo que esse criminoso cometeu ou comete um crime. Isto não é crime. Ou teremos decretado o fim do jornalismo investigativo no Brasil.

Nas conversas que sustentam a denúncia kafkiana, Greenwald outra coisa não faz que deixar claro que tinha compromisso com a proteção de sua fonte, que havia recebido os áudios, que já divulgara, anteriormente ao que pareciam ser novos hackeamentos, e que agia, de acordo com a correta prática jornalística, para resguardar o veículo para o qual trabalha (talvez já intuindo, com razão, que a reação não seria pequena). Isto sendo compreendido pelo procurador – entendimento distorcido em função do objetivo vingador – como um movimento de Greenwald para despistar sua atividade criminosa.

Essa investida autoritária impõe uma provocação. Transformará em crime, se a denúncia prosperar, a relação entre jornalista e fonte (que cometera crime). Será – seria – o fim do jornalismo investigativo? Ou teremos que as únicas fontes doravante admitidas seriam os procuradores que vazam conteúdos de processos sigilosos para jornalistas? Estarão os procuradores em busca de estabelecer uma espécie de reserva de mercado para sua condição de fontes do jornalismo de gabinete?

O lugar em que estamos – e que essa denúncia expõe como se sob o sol de verão – é muito ruim. O espírito do tempo lavajatista – cujo ímpeto vingador, jacobinista, usa o ressentimento reacionário eleito como escada para avançar – é o que endossa, alicerça mesmo, os ataques diários, ataques desferidos pelo próprio presidente da República, contra a imprensa, difundida como atividade nociva da qual se pode prescindir.

Clima hostil ao ambiente das liberdades, ao terreno das garantias fundamentais, para o qual também colabora, sim, o Supremo Tribunal Federal – o mesmo tribunal do qual se espera (e do qual, creio, virá) uma firme palavra derrubadora dessa denúncia inepta. Aí está: a incoerência que substancia a insegurança jurídica. Ou não terá sido esse mesmo STF aquele que – no bojo do bizarro inquérito de Dias Toffoli, aquele, autoritário, sem objeto de investigação definido, instaurado, de ofício, para apurar ameaças aos membros da corte – imporia a censura à revista “Crusoé”? O exemplo vem de cima; de modo que não tardaria até que um desembargador se sentisse à vontade para censurar, por exemplo, o especial de Natal da produtora Porta dos Fundos.

É o lugar em que estamos. E é feio.

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