Da FOLHA

Por RUY CASTRO

Quando Woody Allen tiver sua culpa provada, deixarei de admirá-lo. Mas só então

Em off, na abertura de seu filme “Manhattan”, de 1979, em cima de uma fabulosa tomada noturna de Nova York e logo antes da “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, inundar a trilha sonora, ouve-se a voz de Woody Allen: “Nova York era sua cidade. E sempre seria”.

Será? Não mais. Nova York traiu o amor que Woody Allen lhe dedicou em dezenas de filmes, entrevistas, reflexões e frases apaixonadas durante 50 anos como diretor, roteirista, ator, músico e seu principal símbolo. Manhattan virou-lhe as costas. Quatro grandes editoras americanas, baseadas lá, recusaram ou ignoraram sua oferta de um livro de memórias. A Amazon engavetou seu último filme, “A Rainy Day in New York”, e prefere ser processada a produzir os outros que já tinha sob contrato. E não sei se, mesmo sob o chapéu desabado e os óculos escuros, ele pode continuar andando pelas ruas da cidade, como sempre fez. Não são mais suas ruas.

Gosto de Woody Allen desde seu primeiro filme como ator, “O Que é Que Há, Gatinha”, de 1966. Quando ele estreou como diretor, com “Um Assaltante Bem Trapalhão”, em 1970, eu já lia suas crônicas de humor em revistas como Playboy e The New Yorker. Crônicas que, depois, ele compilaria em livros que, em fins dos anos 70, eu traduziria para a editora L&PM: “Cuca Fundida”, “Sem Plumas” e “Que Loucura!”. E assisti a rigorosamente todos os seus filmes. Ele fez com que nos sentíssemos adultos, inteligentes e sofisticados.

Woody Allen está sendo linchado. Por causa de uma acusação, da qual —note bem— ele já foi legalmente inocentado, sua carreira e sua vida acabaram. Tornou-se alguém de quem não se deve chegar perto. Mas eu gostaria de ler seu livro de memórias. Gostaria também de ver seu filme engavetado e os que ele viesse a fazer. Gostaria de apertar-lhe a mão se o encontrasse na rua.

Quando sua culpa for provada, deixarei de admirá-lo. Mas só então.

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