Da FOLHA

Por CLÓVIS ROSSI

A crise mais esdrúxula de todas as já vistas

Iniciei minha vida profissional, em 1963, cobrindo momentos da conspiração que desaguaria no golpe de 1964. Tenho, portanto, 56 anos de estrada no acompanhamento de crises neste país tropical que parece viciado nelas.

Com tanta experiência, confesso que jamais vi uma crise como a que se desenrola nestes meses. Não sei dizer se é mais ou menos grave que alguma outra ou que todas as outras. Não há um metro exato para medir cada crise.

Mas posso assegurar tranquilamente que é a crise mais esdrúxula que me tocou viver. É um teatro do absurdo levado às últimas consequências, um non sense total e absoluto.

Começa pelo fato de que Jair Bolsonaro confessou publicamente que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar. É natural, portanto, que o leitor Lucas Monteiro (São Paulo) escreva para o Painel do Leitor desta segunda (20) que Bolsonaro “ainda não entendeu o que é ser presidente“.

Claro que ele não entendeu, Lucas, não nasceu para o ofício.

Caberia perguntar por que, diabos, então se candidatou a presidente se não é a praia dele? E, uma vez eleito, o que está fazendo no cargo, se não nasceu para ele?

Talvez o problema esteja no fato de que a carreira para a qual se julga feito tampouco o aceita. Foi expelido do Exército, para a reserva, porque seus companheiros de arma devem tem achado que ele não nascera para ser militar.

Aliás, é um baita non sense um cidadão que se diz talhado para ser militar mas que tem como guru um pilantra que dia sim, outro também, esculhamba os militares em geral. Esculhamba, em particular, os militares que Bolsonaro escolheu para acompanhá-lo no governo. Em seguida às esculhambações, condecora o escatológico astrólogo.

É ou não é um teatro do absurdo?

Mas não fica por aí: o presidente-que-não-nasceu-para-ser-presidente diz que não lhe apetece fazer uma reforma da Previdência. Não obstante, seu guru na Economia (tema ele confessa também não ter nascido para entender) toca como samba de uma nota só “reforma da Previdência/reforma da Previdência”.

Aí, em dado dia, o cidadão que nasceu para ser militar mas foi expelido da carreira divulga texto de um ex-candidato a vereador obscuro de um partido nanico que diz que o país é ingovernável sem que se façam conchavos que Bolsonaro afirma não estar disposto a fazer.

Por isso, segundo o texto, Bolsonaro até agora não fez nada, absolutamente nada. O presidente-que-não-nasceu-para-ser-presidente concorda que não fez nada, posto que divulgou o texto (ninguém em seu juízo perfeito espalha um texto com o qual discorda, a não ser para apresentar a crítica do papel em referência, coisa que Bolsonaro não fez).

A tese de que o Brasil é ingovernável sem conchavos com as corporações (não especificadas no texto, como se fossem alienígenas) é outro non sense. Governar é gerir pressões, demandas e necessidades. A vida, aliás, é também assim. Quem não sabe administrar tais situações não vive bem e, se presidente, não governa bem.

Tudo somado, vem inexoravelmente à memória o filme de 1979 “Being There”, de Hal Ashby (em português, “Muito Além do Jardim”). É a história de um jardineiro, magistralmente interpretado por Peter Sellers, de poucas letras (para dizer o mínimo), que perde o emprego da vida toda e, pelo acaso, vai se aproximando de círculos cada vez mais poderosos até chegar à Presidência dos Estados Unidos.

No cinema, me diverti muito. Na vida real, é assustador.

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