Roberto e Caio Avallone

Por CAIO AVALLONE

Meu melhor amigo viajou.

Tem horas que a ficha cai, tem horas que a ficha não cai, ela simplesmente flutua e gira sobre o próprio eixo… como se o tempo parasse e eu me perguntasse: “aconteceu mesmo?”.

Parece até que foi um sonho.

E, de fato, foi… um GRANDE SONHO… e o melhor: em VIDA.

Sonhei acordado por todos esses anos desde o dia em que ele me conta com doçura ter olhado no meus olhos na maternidade e pensado “conheço esse olhar”. Me apelidou de “alemão-batata”, mas me chamava costumeiramente de Caião – ou Caio – quando estava puto. Costumava dizer que fui um menino comportado, nunca dei trabalho. A não ser no dia em que, brincando no clube do Palmeiras, saltei da balança no ponto mais alto da parábola e, ao olhar pra trás depois dos meus pés tocarem o solo, a balança veio ao encontro da minha testa. Sangue pra todo lado… e alguns pontos. Lembro nitidamente dele correndo comigo no colo até a enfermaria. Sem chorar, eu apenas pedia pra ele que não contasse pra mamãe, pra que ela não ficasse preocupada.

Durante toda uma tarde, tive mais um sonho… quando me levou à TV Record, em 1981, e pediu para que um amável senhor de cabelos brancos projetasse na tela os rolos que continham meus desenhos animados prediletos. Estava vivendo um sonho em vida, dentro de uma cena de “Cinema Paradiso”.

Em 1982, quando não havia internet, esperava ansiosamente com o ouvido colado no rádio pelos seus boletins na Rádio Eldorado, cobrindo a Copa da Espanha, a única copa que ele confessa ter arrancado lágrimas de seus olhos. Dos meus também.

E, de tanto que sonhávamos juntos, o sonho ganhou ares de delírio, quando, ao caminharmos na Praia de Tabatinga em uma noite de verão estrelada, observamos um objeto lindo, grande, redondo, repleto de luzes, parado sobre nossas cabeças – tudo isso minutos após eu ter perguntado se ele acreditava em disco voador. Acho que depois daquilo ele passou a reconsiderar que talvez não estejamos sozinhos.

E o sonho continuava… quando íamos em direção ao estádio do Pacaembú. Entramos pelo acesso de impressa e, passo por passo, fomos passando sem dificuldades pelos seguranças que o reconheciam e, quando dei por mim, estava em cima do palco, a 5 metros do Gene Simmons cuspindo fogo no palco do Monsters of Rock. Foi difícil dormir depois.

O sonho que parecia impossível caiu por terra, quando, no ano da graça de 1993, demos um longo abraço no estacionamento da TV Gazeta, dia no qual – após 18 anos – pude pela primeira vez gritar “Palmeiras Campeão”. E paramos por aqui: se eu for falar de Palmeiras, o campo de texto terá um scroll infinito, é muita história pra contar.

Durante toda a sua carreira, me levava a tira-colo nos seus sonhos, para onde quer que eles apontassem. Ainda menino, eu frequentava a redação do lendário Jornal Tarde, onde ele fez história datilografando textos premiados em sua inseparável Olivetti, cujo som de suas teclas inebria a todos que foram da geração raiz, e não da geração digital Nutella.

Vivíamos no Bar do saudoso Elias. Lá eu via conselheiros dando murros na mesa, discussões acaloradas, furos de reportagem, jogadores lendários. O Palmeiras passava por lá, e o futebol também.

Depois, o sonho migrou para os bastidores da TV Gazeta, onde o vi reinventando o gênero de debates esportivos. Conhecia cada metro quadrado da emissora.. e, religiosamente, aos domingos, eu ia à missa com ele cujo nome era Mesa Redonda Futebol Debate.

Testemunhei nos bastidores desse sonho, sua obstinação em fazer cada reportagem, cada “cornetada, cada pauta, cada palpite, cada polêmica, como se fosse a última.
Presenciei ele e seu time de destemidos darem 12 pontos de audiência usando tacapes e talentos contra artilharias pesadas. E, a cada batalha vencida, a sagrada recompensa que adentrava a madrugada no Lellis, ao sabor do Filet a Oswaldo Aranha e do Creme de Papaia com Cassis.

Sonhei (e não eram sonhos leves) quando por algumas vezes a falta de lithium no sangue fazia lhe faltar a razão. Mas não faltava amor e empatia da família
para ajudá-lo na recuperação e construirmos juntos um manual de instrução.

Enfim, foram muitos sonhos, relatei apenas 1%. Estou sendo injusto com uma centena deles que poderão estar em um livro de memórias, em um documentário.

Hoje, dia 27 de fevereiro, pela primeira vez, desde que me dei por gente, não vou poder falar por telefone após o jogo com o meu pai, meu irmão de alma palmeirense.

Mas, como em todo sonho que se preze, é claro: estaremos juntos. Que nessa noite, ele tenha a liberação do lado de lá para estar com toda a sua família, no Allianz (eterno Parque Antarctica), onde ele será lembrado por todos aqueles que amavam seu trabalho, seus jargões, sua coragem, sua originalidade, sua autenticidade.

Avanti, meu pai. Siga em frente e faça da sua próxima jornada, um grande sonho, do tamanho de sua luz.
A realidade é pequena demais para os que se permitem sonhar e a ensinar os outros a sonharem, como você me fez.

Mande um beijo enorme pra Tia Dora, ok? Exclamação!!!!


Obs: queria agradecer o imenso carinho que recebi, realmente não dei conta de responder. Tinha noção da sua importância, mas confesso que, nem em sonho, eu imaginava o quanto ele impactou gerações – dada a repercussão que houve na mídia e nas redes na segunda-feira. Minha mais pura e sincera gratidão de poder descobrir também, pelo olhar dos outros, o quão respeitado e querido ele foi.

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