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(Trecho do livro “Confesso que Perdi”, escrito por JUCA KFOURI, que será lançado, ainda este mês, pela Companhia das Letras)

Não havia pós‑graduação à noite e a Abril me liberava para fazer o curso, algo impossível com a Placar, porque a abertura da revista se dava às terças, dia de expedir as pautas e cobrar as anteriores, função do chefe de reportagem.

Bem mais tarde soube que em minha classe a maioria fazia parte, como eu, de grupos clandestinos. Já aos 17 anos, eu era do chamado “grupo de apoio” da Ação Libertadora Nacional, a ALN, organização de combate à ditadura comandada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.

Ajudava a fazer a documentação para quem tinha de sair do Brasil e, depois da morte de Marighella, em 1969, servi como motorista de Câmara Ferreira, o Toledo, ou o Velho, a quem devo o fato de estar vivo. Ajudei a fazer os documentos, por exemplo, do publicitário Carlos Knapp, o Washington Olivetto dos anos 60 em São Paulo, dono da badalada agência Oficina de Propaganda.

Knapp dirigia seu Mercedes‑Benz com Marighella para cima e para baixo, além de esconder o guerrilheiro em sua residência, no elegante bairro paulistano do Jardim Europa, a 300 metros da casa do comandante do II Exército. Ninguém desconfiaria que dentro de um carrão raro como aquele na cidade pudesse estar o “inimigo público número 1” da ditadura.

Não foi fácil tirá‑lo do país, pois Knapp usa bota ortopédica por causa de uma osteomielite sofrida na infância.

Relato apenas este caso porque o próprio publicitário já o contou em suas memórias Minha Vida de Terrorista.

Mas não foi por nada disso que na noite de 7 para 8 de setembro de 1971 fui preso e levado para o DOI‑Codi, na rua Tutoia, o inferno chamado de Operação Bandeirantes.

Em plena Semana da Pátria na faculdade, fui estudar com três colegas no apartamento de um deles no Guarujá. Na volta a São Paulo, os convidei para tomar cerveja em minha casa. Dois aceitaram o convite. O terceiro, Guido Mantega, não aceitou. Passamos a brincar com ele por ser um cara de sorte e com ele viajei, no ano seguinte, até a região dos lagos quentes de Osorno, no Chile, de automóvel.

Pouco antes da meia‑noite, quando nos preparávamos para deitar, minha primeira mulher, Susana, que aniversaria no dia 8 de setembro, e eu ouvimos a campainha tocar forte e a porta do apartamento ser esmurrada. Quando abri, sei lá quantos homens armados de metralhadora entraram na sala.

Apavorante e ridículo. Apavorante por motivos óbvios, ridículo porque até um faqueiro, cuja chave foi impossível localizar em meio àquela cena, eles ameaçaram explodir, por suspeitar que nele houvesse armas.

Nos levaram para a rua Tutoia, de onde só nos soltaram no início da noite seguinte. Durante a madrugada e o dia inteiro ouvimos um de nossos colegas gritar sob tortura.

No meio da madrugada, fui interrogado. Eu podia saber por que estava sendo preso, mas sabia, também, que eles não sabiam por que haviam me prendido. Nenhum dos dois colegas tinha a menor ideia do que eu fizera na ALN, da qual já estava desligado.

Com muito medo, mas firme, comecei a responder ao interrogatório.

– Você é comunista?

– Não – menti.

– Mas socialista você é?

– Socialista é o ideal cristão – respondi.

– Você tem um primo procurado como terrorista – afirmou o interrogador.

– Como tenho outro que é o braço direito do governador Laudo Natel.

(O primo procurado era João Carlos Kfouri Quartim de Moraes e o braço direito do governador era Henri Aidar.)

– Por que você tem tantos livros subversivos?

– Não são subversivos, são livros de estudo da faculdade.

– Sua mulher já viu seu amigo pelado?

– É claro que não.

– Pois vai ver agora e vai chupar o pau dele na sua frente.

Tomado pelo pavor e pela indignação, reagi:

– Sou um cidadão comum, pago meus impostos, vocês não têm nada contra mim e eu exijo ser bem tratado e ficar ao lado de minha mulher.

O interrogador, de cabelo cortado rente e não mais de 35 anos, levantou‑se irritado e me deu um tapa no rosto, gritando:

– Vocês saem na chuva e não querem se molhar. Você vai ficar com ela até que a gente saiba tudo. Daí você vai ver o que é bom, porque aqui pode ser o céu ou o inferno.

No fim da tarde, sem mais, outro policial entrou na salinha em que estávamos confinados e disse que poderíamos ir embora, mas que não falássemos nada para ninguém sobre o que havia acontecido e que olhássemos para o episódio como experiência de vida.

Dias depois, sempre seguido por dois homens aonde quer que fosse, inclusive um jogo entre Corinthians e Vasco no Parque Antarctica, fui chamado a depor no Dops. Nome do delegado que me interrogou: Alcides Singillo, mais tarde denunciado por ter participado da prisão ilegal e ocultação do paradeiro do lavrador Manoel Conceição Santos. Quando vi o sobrenome numa placa sobre sua mesa, pensei em Kafka: dr. Singillo!

Minha ficha no Dops diz que meu nome de guerra é… é… Juca! De fato. Um tio foi o responsável. Eu tinha uns 3 anos.

O que nos levou à prisão foi o carro mal estacionado de um dos colegas. Pela placa levantaram sua identidade e souberam que ele já tinha sido preso por subversão. Abriram o carro, havia panfletos, esperaram por sua chegada e o fizeram dizer de onde vinha.

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