Do ESTADÃO
Por LÚCIA GUIMARÃES
“Uma regra básica de etiqueta política é, insulte o candidato adversário, mas não seus eleitores. No fim de semana que marcou os 15 anos do ataque de 11 de Setembro, a candidata mais cautelosa da história democrata recente fez exatamente isto. Disse que “metade” dos eleitores de Donald Trump cabia na “cesta dos deploráveis”. O que, de acordo com as últimas pesquisas, daria cerca de um quarto do eleitorado norte-americano.”
A mídia mal acreditou no presente da candidata que passou mais de 250 dias sem dar uma coletiva, um jejum recentemente quebrado. Trumpistas e senderistas, independentes e libertários, baixaram o sarrafo em Hillary. As desculpas, inevitáveis, vieram. Donald Trump chamou mexicanos de estupradores e foi convidado para ir ao México. Ronald Reagan cunhou o clichê sobre mulheres negras como “rainhas da assistência pública” e foi canonizado.
Mas algo interessante aconteceu, acredito, por causa da rede social e da intensidade com que internautas, jornalistas profissionais ou não, correm com a bola diante de um comentário. Antes mesmo de Hillary emitir suas desculpas insinceras, veio o rebote: Trump, ao não rejeitar o apoio de membros da Ku Klux Klan, de milícias de ultradireita e antissemitas declarados, tem, sim, o monopólio de um eleitorado deplorável.
O jornalista James Surowiecki lembrou que o racismo é o motivo pelo qual a classe trabalhadora branca passou a votar nos republicanos, depois de 1968. Chamar eleitores de Trump de racistas e xenófobos não é insulto, é descrição. Um estudo realizado nos anos 1980, entre os chamados “Democratas pró-Reagan”, mostrou que a deserção para um candidato republicano era fortemente motivada por aversão a negros. O racismo, assim, aparece como uma identidade política. E o temor de candidatos de atacar eleitores não é motivo para que o debate seja censurado.
Mas o tratamento dado à gafe política de Hillary é só um novo exemplo do deplorável comportamento de boa parte da mídia norte-americana com a candidata. Outro exemplo egrégio, na semana passada, foi tão óbvio que houve uma breve pausa para um mea-culpa. A rede NBC colocou o mesmo âncora néscio que foi enrolado pelo nadador Ryan Lochte, durante a Olimpíada, como mediador do primeiro evento com Hillary Clinton e Donald Trump. Sob o pomposo título de “Fórum do Comandante em Chefe”, numa referência ao fato de que o presidente dos Estados Unidos comanda as forças armadas, os dois adversários não se encontraram. Por sorteio, Hillary foi sabatinada na primeira meia hora, Trump em seguida. O âncora Matt Lauer desperdiçou boa parte do tempo com Hillary perguntando sobre os tais e-mails do servidor privado. Nenhuma curiosidade sobre China, Coreia do Norte, Rússia, reais ameaças à segurança nacional. E ainda foi acusado, com razão, de sexismo no tratamento da entrevistada.
Já Donald Trump fez de Matt Lauer um capacho, mentindo sobre seu apoio inicial à invasão do Iraque, sem ser contestado com fatos e demonstrando ignorância aterradora sobre política externa e terrorismo. O evento deixou um gosto amargo entre o comissariado da mídia. Tornou ainda mais evidente o tratamento diferente dispensado a cada candidato.
Hillary Clinton é questionada severamente como deve ser qualquer aspirante a ocupar a Casa Branca. A ela fazem perguntas complexas sobre mísseis norte-coreanos ou centrífugas de enriquecimento de urânio iranianas. Donald Trump se beneficia de baixas expectativas e da tonteira que provoca por mentir tanto e chocar constantemente. E, perdão por soar como disco arranhado, não há busca possível de equilíbrio na objetividade jornalística aqui. Neutralidade é uma atitude imoral diante de uma emergência nacional de consequências globais como Donald Trump.
Esta pergunta hoje é legítima: A mídia vai ajudar a eleger Trump? Se a resposta for afirmativa, não é preciso usar ponto de interrogação aqui: Todos os norte-americanos serão julgados pela posição que assumiram diante do candidato republicano.