BenQ

Por PROF. PAULO FONTES*

Nos anos 30, o Flamengo, clube de elite, dirigido por membros da mais alta “fina flor” da sociedade carioca, investiu pesada e conscientemente no projeto de se tornar um “clube popular”. Contratou uma série de grandes jogadores negros (Fausto, Leônidas e Domingos da Guia), associou sua imagem a deles, vinculou suas cores (o vermelho e negro) às das religiões de origem africana e, em grande medida, articulou-se com o projeto nacional-populista (e autoritário) predominante na era Vargas. A divulgação em grande escala desta imagem do Flamengo nacionalmente via o rádio, grande meio de comunicação da época, tornou o rubro-negro o clube mais popular do país.

O Flamengo “roubou” assim o lugar do Vasco, clube que inicialmente tinha mais condições de clamar esse posto, já que nascido no subúrbio, com dirigentes imigrantes menos “cardeais” e que havia incorporado muito antes, e de forma corajosa, jogadores negros e trabalhadores ao seu elenco.

Relembro tudo isso para dizer que no século XXI, o São Paulo Futebol Clube teria um potencial enorme de se associar a um projeto de um clube popular, moderno e progressista que se articula com a juventude da periferia e muito de seus valores democráticos (incluindo princípios como dignidade, antiracismo, antihomofobia, entre outros).

As circunstâncias históricas são obviamente outras, mas o Tricolor Paulista é o clube que mais atraiu novos torcedores nas últimas duas décadas, a maioria deles jovens, trabalhadores, com uma grande quantidade de afrodescendentes. Desta forma, tornou-se a terceira maior torcida do país, com uma enorme presença nos setores populares, o que contradiz a imagem elitista frequentemente atribuída ao clube.

Em São Paulo, é o único time que efetivamente disputa os torcedores na periferia com o Corinthians.

O favor que a FIFA e a CBF fez ao tirar o Morumbi da Copa, poderia ser usado como uma imagem de independência política e honradez. Infelizmente, a direção do clube reproduz velhos preconceitos da elite brasileira. Comportam–se como os quatrocentões tacanhos que são.

A rivalidade com o Corinthians é usada para falar mal da periferia e dos torcedores populares (negros e trabalhadores em sua enorme maioria), justamente o espaço e o público onde a torcida mais cresce e onde o amor e a dedicação ao Tricolor são maiores.

Um tiro no pé!

Reforçar uma marca de elite exclusivista no Brasil de hoje é definitivamente perder o bonde da história.

As declarações de Carlos Miguel Aidar têm um peso simbólico evidente, do qual será difícil o clube se livrar. Ofendem os torcedores do clube ainda mais do que os adversários (que obviamente estarão sempre a nos lembrá-las) e reforçam o conservadorismo e atraso dos setores elitistas e reacionários presentes na comunidade tricolor.

O São Paulo Futebol Clube, felizmente, é muito maior que a pequenez de seus limitados dirigentes. Por isso mesmo, seria fantástico se surgisse um movimento entre os torcedores do São Paulo exigindo não apenas que Aidar peça desculpas e se retrate publicamente, mas também que crie políticas que associem o clube com valores republicanos e democráticos.

Manter, ampliar e aprimorar uma política de acesso ao Morumbi com ingressos e transporte baratos, estabelecer subsedes do clube na periferia e realizar campanhas na TV e Internet associando o clube à tolerância e ao pluralismo, seriam alguns bons exemplos que fariam juz às expectativas que a grande maioria torcedores, com dentes e desdentados, tem do seu amado Tricolor.

*PAULO FONTES é são-paulino, historiador e professor da Escola de Ciências Sociais da FGV(CPDOC/FGV)

Facebook Comments