Por MINO CARTA

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Este país é de poucos heróis definitivos, mesmo porque raros são os indiscutíveis. Getúlio, digamos. Visões e realizações de estadista, mas um largo período de ditadura. Não faltará quem sugira Pelé. Excepcional na prática da sua arte, exposto, porém, a graves reparos como figura pública, pronto a aceitar o papel de preto de alma branca, e bem sabemos o que significa alma branca nas nossas paragens.

Não hesito em propor Getúlio ao lado de Pelé, falo dos heróis do povo. Ocorre-me Machado de Assis, obviamente definitivo, receio, contudo, popular até certo ponto. Lula sim, o divisor de águas, o operário nordestino que muda a história do País, altera-lhe profundamente o curso com a sua simples eleição, de certa forma antes que pelo desempenho na Presidência.

E então Sócrates. Fosse da época da cavalaria medieval, seria outro Bayard, o cavaleiro sem jaça e sem medo. O luto costuma vestir os paramentos da retórica, quando não do pieguismo. Tenho certeza de não escorregar por tal ladeira ao enxergar no cidadão Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira um herói definitivo, de notável talento no trato da Leonor, inovador até, e extraordinário como figura pública, a comprender-lhe responsabilidades e alcances.

Falou-se bastante nestes dias de uma de suas façanhas, politicamente mais importante do que seus gols memoráveis, a criação da Democracia Corintiana, hoje celebrada em todo o mundo. Excluída a percepção de alguns analistas inclinados a examinar os fatos dentro da moldura histórica, entendeu-se o fenômeno como forma de rebelião contra dogmas impostos por cartolas e técnicos, e de consagração de um futebol feito de imaginação e picardia.

Pois o tempo era de ditadura, e aquela específica democracia configurava, antes de mais nada, um claro desafio ao regime imposto manu militari pelos eternos donos do poder, a serem entendidos, creio eu, como cartolas no sentido mais vasto e abrangente. Deste ângulo, no entendimento das vicissitudes políticas e das carências sociais do País, Sócrates é extraordinariamente incomum no nosso futebol, e no esporte em geral.

Trata-se de alguém capaz de colocar sua popularidade de craque a serviço de uma causa que vai muito além da autonomia dos profissionais do futebol, é a da liberdade e da igualdade do povo brasileiro, valores indispensáveis a uma democracia autêntica, aquela que ainda não atingimos. Há tempos conheci Sócrates, por dez anos privei com ele na sua qualidade de colunista de CartaCapital, e nunca duvidei da nitidez dos seus propósitos e dos seus ideais.

Sócrates se foi muito antes do tempo, soube viver a vida, no entanto, e de vários pontos de vista. Não lhe faltaram, por exemplo, boas leituras, matriz da boa escrita, própria da sua coluna, e da sua fala, na lida escorreita com o vernáculo e na exposição precisa das ideias. Era de conversa afável e colorida, ficava-se com ele no papo sem perceber a passagem das horas, misturavam-se pensamentos impregnados pela consciência da cidadania com a evocação de refregas pindáricas e todo um anedotário sorridente e às vezes nostálgico.

Alguém surpreendeu-se ao ler um breve texto que escrevi no domingo 4 para o site de CartaCapital, entregue à comoção do momento logo após ter sido informado a respeito da morte de Sócrates. Ali dizia ter tomado vinho com ele, na sua casa paulistana, de uma garrafa de decentíssimo cabernet aberto pela mulher dele, suave e devotada. Pois esta era a cortesia em Sócrates, sabia da minha preferência pelo vinho em lugar da cerveja e muitas vezes fez questão de adequar-se ao meu gosto.

Houve outras, em que me antecipei na escolha da loira borbulhante. Recordo a noite de um bar habilitado a servir também carne-seca com abóbora e arroz de bacalhau, fui de vinho, ele de cerveja, a bem da alegria de ambos. Sinto muita falta de noites iguais.

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