Do CORREIO BRAZILIENSE

POLÍTICA – 02/11/2008

Levantamento revela que grandes clubes e Ongs comandadas por ex-atletas de renome receberam 40% de 64 milhões doados por meio da Lei de Incentivo ao Esporte. Meta de inclusão social é prejudicada

IZABELLE TORRES

DA EQUIPE DO CORREIO

Criada para fomentar o desporto e promover a inclusão social, a Lei 11.438/2006, batizada de Lei de Incentivo ao Esporte, tem descumprido uma de suas funções primordiais em quase metade dos projetos que beneficia. O objetivo de incluir jovens de baixa renda em atividades sociais desportivas passa longe da maioria dos projetos aprovados pelo Ministério do Esporte em 2007 e 2008. Levantamento realizado pelo Correio mostra que, à custa da renúncia tributária em favor de empresas que patrocinam atividades esportivas, grandes clubes e organizações não-governamentais (ONGs) capitaneadas por gente famosa se beneficiaram de 40% dos R$ 64 milhões repassados desde o ano passado por meio da lei.

Do total, 30% foram destinados a dois grandes clubes do país. Enquanto isso, pequenas entidades dedicadas a projetos sociais amargam na fila à espera de doações e da boa vontade de empresários. A análise dos projetos aprovados demonstra não apenas que o volume de recursos captados é proporcional ao tamanho da instituição, mas também que quantias que poderiam priorizar a inserção de pessoas de baixa renda patrocinam reformas em arquibancadas e construções de estacionamentos de grandes clubes. Para essas duas finalidades, o São Paulo Futebol Clube, campeão de arrecadação, captou R$ 4,3 milhões, tendo recebido outros R$ 9,5 milhões no último ano para obras de vestiários, centro médico e de reabilitação.

Outros clubes que receberam doações de empresas, como o Esporte Clube Pinheiros, o BNB Fortaleza e o Minas Tênis Clube, não realizam atividade de inclusão social. Para praticar esporte gratuitamente nesses locais, só depois de um teste de seleção: nada de escolinhas e aulas de formação para quem ainda não tem prática e não aprendeu o esporte.

Questionados pela reportagem se teriam vaga para um aluno carente, os clubes afirmaram não ter atividades adequadas e gratuitas para iniciantes. Algumas ONGs também conseguem com facilidade os recursos pleiteados por meio da lei. A maioria delas é chefiada por pessoas famosas, que podem dar às empresas dividendos em marketing em troca da doação. É o caso do Instituto Passe de Mágica.

Criado pela ex-jogadora de basquete conhecida como Magic Paula, a entidade recebeu R$ 287 mil de empresas menos de um mês depois de seu projeto ter sido aprovado pelo Ministério do Esporte.

A ex-jogadora de basquete Janeth Arcain conseguiu mais de R$ 1 milhão para patrocinar o instituto que leva seu nome. O judoca Rogério Sampaio arrecadou para sua associação mais de R$164 mil, sendo que a entidade não oferece curso gratuito para jovens carentes, segundo informou a secretária por telefone. Enquanto grandes clubes e instituições de gente famosa recebem os recursos e doações, em média, um mês depois da aprovação do projeto pelo ministério, entidades pequenas amargam meses à espera de patrocinadores, que nem sempre aparecem no prazo determinado para a captação da verba.

Pelo menos cinco pequenas organizações que desenvolvem atividades de inclusão aguardam doadores. É o caso do Instituto Cultural e Profissionalizante de Portadores de Deficiência do DF, do Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural, que cuida de pessoas com Síndrome de Down, e da Federação Goiana de Basquete em Cadeira de Rodas. “A lei ficou elitizada demais. Para quem não faz parte dos esportes comerciais é bem difícil arranjar as doações. É uma pena, mas ficou mais fácil para projetos pouco voltados para a inclusão social, porque os grandes clubes se articulam melhor com as grandes empresas doadoras”, diz a idealizadora do instituto Olga Kos, Virna Munhoz.

PARA SABER MAIS

Esperança para o setor

Depois de mais de 20 anos tramitando no Congresso, a Lei de Incentivo ao Esporte foi aprovada em 2006. Desejada por entidades e atletas e considerada por especialistas uma grande esperança para o desenvolvimento do desporto no país, a norma prevê que patrocínios e doações para a realização de projetos desportivos sejam descontados do Imposto de Renda. Esses gastos poderão ser deduzidos em até 6% para pessoas fisicas e 1 % para pessoas jurídicas.

Para aprovar um projeto, a entidade interessada deve se cadastrar no site do Ministério do Esporte e enviar sua proposta. Os dados serão analisados por uma comissão técnica do órgão que pode aprovar ou não a doação de empresas à instituição em troca de benefícios tributários. Apesar de tratar deforma genérica os tipos de projetos que podem ser aprovados, a lei se refere diretamente a atividades de inclusão social, “preferencialmente em comunidades de vulnerabilidade social”.

ELENCO DE AGRACIADOS

São Paulo Futebol Clube

R$6,6 milhões para alojamento de atletas

R$4,3 milhões para arquibancadas e estacionamento

R$2,7 milhões para o centro de reabilitação

Associação Esportiva Janeth Arcam

R$1,1 milhão para formação esportiva de 675 pessoas

Esporte Clube Pinheiros

R$ 4,1 milhões para o programa de formação desportiva para 800 atletas não profissionais

BNB Clube de Fortaleza

R$256 mil para reforma da quadra e construção de cobertura

Federação Paulista de Hipismo

R$1,2 milhão para fortalecimento do hipismo

Instituto Passe de Mágica (ex-jogadora de basquete Magic Paula)

R$287 mil para o projeto Educação através do Esporte

Instituto Brilho Brasileiro (Tenista Vanessa Menga)

R$179 mil para o projeto crianças e jovens que brilham

Instituto Rumo Náutico

R$172,5 mil para o projeto Grael

 

PEQUENAS ENTIDADES À ESPERA DAS DOAÇÕES

 

Federação Goiana de Basquetebol em Cadeira de Rodas

R$1 milhão

Associação Brasiliense de Atividades Terapéuticas e Esportivas

R$215 mil

Instituto Olga Kos de inclusão Cultural

R$390 mil

 

Suspeita de “desvio grave”

 

O distanciamento entre instituições pouco conhecidas e os benefícios da Lei de Incentivo ao Esporte é explicado pelo advogado especialista em desporto José Ricardo Rezende como resultado da falta de estrutura dessas organizações para elaborar projetos e cumprir critérios formais previstos na norma. Segundo Rezende, não se pode ignorar o fato de que para conseguir os recursos é preciso reunir profissionais com ampla capacidade de planejamento e gestão de projetos, o que demanda a contratação prévia dos serviços ou a sensibilização para o trabalho voluntário.

“Como o custo dessa contratação é inviável para entidades comunitárias e isso é uma realidade que temos de enfrentar, fica evidenciado que a grande maioria dos famosos projetos sociais esportivos de pequeno porte dificilmente terá acesso aos recursos incentivados, seja pela informalidade com que desenvolvem suas atividades, seja pela falta de preparo para lidar com questões burocráticas”, diz o advogado. Para Rezende, a desvantagem dessas instituições fica mais evidente porque, na briga pelos recursos, estão também entidades desportivas dotadas de alta capacidade de articulação.

Fiscalização

“Sem falar no facilitado acesso dessas entidades às empresas de grande porte, que são os principais patrocinadores. Mas não podemos condená-las por isso. Afinal, a lei é para todos”, afirma Rezende. 0 senador Álvaro Dias (PSDB-PR) considera lamentável o fato de que a maior parte dos recursos liberados por meio da lei beneficie grandes grupos e ONGs influentes. Para o tucano, é preciso que haja fiscalização desses investimentos e rigor do ministério nas aprovações dos projetos. “Está havendo um claro desvio de finalidade. A lei tem de ajudar as pessoas carentes e as pequenas entidades, e não patrocinar reforma de arquibancada de grandes clubes à custa de renúncia fiscal.”

Dias ressalta também que alguns valores são exagerados para o público que o projeto atenderá. É o caso dos R$ 20 milhões aprovados para a Confederação Brasileira de Desporto realizar campeonatos e do R$1 milhão liberado para a

Associação Esportiva e Recreativa (USIPA) promover natação para 340 crianças. “Tudo isso tem de ser fiscalizado de perto. Não creio que o ministério esteja fazendo isso”, critica o senador.

O líder do PSDB no Senado, ArthurVirgíIio (PSDB-AM), faz coro. Ele considera um absurdo que as instituições ricas recebam recursos com facilidade, enquanto entidades pequenas que trabalham nas regiões distantes e precisam de dinheiro sequer sabem como fazer para receber os benefícios.

“É um desvio grave. A lei tem de servir para beneficiar os mais carentes. Não se pode abrir espaço para qualquer financiamento”, afirma Virgílio. Por meio de assessoria de imprensa, o Ministério do Esporte disse que não se trata de “abrir espaço para qualquer tipo de financiamento esportivo”, pois só podem ser financiados os projetos previstos na norma e nos seus regulamentos. Segundo a assessoria, exceções e permissões estão previstas na legislação e são obedecidas pela comissão técnica responsável por analisar as propostas. (IT)

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