JOSÉ ROBERTO TORERO

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk1103200822.htm


Matutei profundamente e cheguei à conclusão de que eu deveria entrevistar o sorveteiro da terceira divisão


ESTA SEMANA , um leitor identificado como Ivan enviou-me um e-mail não muito gentil que dizia: “Seu jornalista de m…, há três semanas que você só fala de uns timinhos insignificantes que não jogam b… nenhuma. P…, vai entrevistar o sorveteiro da terceira divisão!”
Matutei profundamente sobre a manifestação do terrível Ivan e cheguei à conclusão de que ele estava certo. Eu deveria mesmo entrevistar o sorveteiro da terceira divisão. No dia seguinte, lá estava eu no jogo entre o alviceleste Nacional e laranja-berrante Oeste Paulista. Havia umas 140 pessoas no estádio Comendador Souza. Entre elas, um sorveteiro franzino e sorridente (apesar dos poucos dentes). Peço um picolé de uva e pergunto como ele se chama.
– Meu nome é Raimundo.
– De quê?
– Da Silva, né.
– Posso lhe fazer umas perguntas?
– Pode. Mas tem que falar alto que eu estou meio surdo. Tem muita buzina em São Paulo.
Raimundo tem 52 anos e vem em todo jogo do Nacional desde os 12. Vende uns 50 sorvetes por jogo e nos outros dias trabalha na rua. Ganha cerca de R$ 300,00 por mês e vive com dois irmãos. Não casou porque “casamento só é bom no primeiro dia. Depois é só briga”.
Pergunto se o movimento hoje não está especialmente fraco. – Não, é sempre assim.
– Então por que o senhor vem para cá?
– Venho porque só eu que venho.
O Corinthians é seu segundo time. Mas num jogo entre seus dois clubes, torceria para o Nacional. Raimundo já foi faxineiro e gosta muito de trabalhar com limpeza.
– O que faz para se divertir?
– Corro. Já ganhei umas 50 medalhas de participação. Mas dei quase todas. Medalha pé-de-chinelo eu não quero. Aquelas medalhinhas de honra ao mérito eu dou para os colegas, para os vizinhos.
Só guarda as que ganhou nas São Silvestres e nas maratonas (já fez quatro e diz que terminou todas). Neste momento, o Oeste faz 1 a 0. Raimundo faz um muxoxo. Realmente ele não está numa fase de muita sorte. Machucou o joelho em outubro e desde então deixou de fazer seus 10 km diários. Tinha uma bicicleta (“daquelas Barra Circular”), mas ela quebrou. A tevê também pifou, e ele ficou apenas com um rádio. O pior é que o seletor do aparelho está estragado e ele não consegue mudar de estação.
– Antes estava na rádio do Davi Miranda, mas ele só falava naquelas coisas de demônio, e eu estava ficando louco. Fui no homem que conserta rádio e pedi para ele dar um jeito. Não consertou, mas pelo menos agora está na Jovem Pan.” Para terminar, pergunto qual a coisa que ele mais deseja no mundo.
– Quero ser faxineiro do Pão de Açúcar. Aí eu entro na equipe de corrida deles. Um torcedor que escutava a conversa, não se conforma: “Só isso? Tem que sonhar mais alto.”
– Povo não pode ficar sonhando muito, filosofa o sorveteiro enquanto pega sua caixa de isopor e sai. Depois, só o vejo quando comemora o gol de empate do Nacional.
Ele grita de longe: “Não esquece! Meu nome é Raimundo!”

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